sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Entrando em 2012

Os movimentos de indignad@s que brotaram este ano e continuam florescendo nos mais diversos rincões do planeta nos gritam que algo está errado: na maneira como funciona a economia; na forma como são tomadas as decisões que dizem respeito a tod@s; na forma como nós humanos nos relacionamos entre nós e como interagimos com as demais espécies que constroem conosco o mundo que habitamos. Esses movimentos são sinais de que algo está em crise.

O ideograma chinês que traduz a palavra "crise", wei-ji, está composto por dois símbolos: o primeiro, wei, significa perigo; o segundo, ji, ponto de mutação. A crise é, portanto, uma oportunidade ímpar de transformação.

Que 2012 represente uma ocasião única de repensarmos e transformarmos a maneira como pensamos, falamos e agirmos; de revermos nossas concepções do supérfluo e do necessário; de compreender-nos a nós mesmo um pouco melhor; de pararmos para respirar, para refletir e para viver.

Feliz Ano Novo a tod@s!

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Na natureza selvagem - Terceira e última parte: Explorando a trajetória de Chris McCandless - 2

Continuação do artigo. Clique aqui para ler a primeira parte.

O preço da dicotomia sociedade-natureza

Krakauer mostra que Chris não morreu, como muitos ao saberem da sua história julgaram, por arrogância, narcisismo e falta de bom senso. Contrariamente ao que parece sugerir Sean Penn no filme que reconta sua história, não foi por falta de experiência do ambiente natural nem por desdém dos saberes, seja os da tradição como os produzidos pela civilização urbano-científica, que acabou envenenado por uma batata silvestre. Chris fez questão de levar consigo na floresta manuais e trabalhos acadêmicos que continham, sistematizados, conhecimentos muito detalhados de biologia ocidental e biologia Tanaina (uma população indígena do Alasca) sobre a flora e a fauna da região - saberes que incorporou plenamente à sua bagagem cognitiva. Antes de empreender a viagem ao Grande Norte, além do mais, realizou numerosas consultas com caçadores e exploradores experientes, cujos conselhos guardou e em diversas ocasiões pôs em prática durante a sua “última e maior aventura”.

Krakauer mostra detalhadamente que Chris nunca confundiu – como muitos comentadores do trágico desfecho da sua experiência acreditaram e como Sean Penn também sugere – duas espécies de raízes muito parecidas entre elas, uma das quais comestível e a outra venenosa. Também mostra que o erro de Chris teriam podido cometê-lo até experientes conhecedores da flora da região, inclusive indígenas, posto que o que o envenenou não foi a batata-silvestre que ele comeu, absolutamente comestível, e sim um tipo de toxina que suas sementes desenvolvem e carregam só em determinada época do ano – o final do verão – e que, antes do seu dramático fim, não sabia-se que isto acontecia, pois não constava em nenhum trabalho acadêmico de biologia e em nenhuma obra de sistematização dos amplos conhecimentos do povo Tanaina. Poucas, mínimas ingenuidades resultaram-lhe fatais, ingenuidades causadas pela radical dicotomização que operou entre uma natureza que fazia questão de experienciar como “pura”, “selvagem” – e que, para ele, de fato o foi... até o ponto de custar-lhe a vida! – e uma sociedade corruptora, cuja interferência na primeira percebia como “invasão” a ser evitada como veneno. Por isso, não levou consigo um mapa da região onde adentrou e não chegou nunca a saber que - quando o rio Teklanika em cheia lhe impediu a passagem para a margem oposta, de onde teria facilmente voltado para a “sociedade dos homens” após dois meses de vida na floresta brilhantemente encarada – se tivesse subido poucos quilômetros acima, teria encontrado uma cabana com equipamentos que teriam lhe permitido passar do outro lado. De fato, o trecho de floresta onde o jovem se instalou decidido a “perder-se na natureza” era na verdade, como mostra Krakauer, bem pouco “selvagem” no sentido de que ele mesmo impregnava esta palavra:A menos de cinqüenta quilômetros para leste encontra-se a importante rodovia George Parks. A apenas 25 quilômetros para o sul, adiante da escarpa da cadeia Exterior, centenas de turistas entram ruidosamente todos os dias no Parque Denali, por uma estrada patrulhada pelo Serviço Nacional de Parques. E ignoradas pelo Viajante Estético, espalhadas dentro de um raio de dez quilômetros do ônibus, encontram-se seis cabanas (embora nenhuma estivesse ocupada no versão de 1992) (p. 174).

De qualquer forma, antes de ficar “preso” na floresta pelo rio e de, com o avançar do verão, ver diminuir suas chances de conseguir alimento e acabar envenenado involuntariamente pelas sementes de uma batata-silvestre considerada por todos não perigosa, Chris tinha se saído excelentemente. O que a mim interessa são as transformações em sua percepção, estratégias de interação com o mundo e representações que o mergulho num ambiente não-humano produziu em Chris ao longo de sua última e, infelizmente, fatal experiência no Alasca.

Vivência da natureza e atenção plena: pistas para a reflexão a partir da experiência de Chris McCandless

Krakauer nos sugere uma pista para compreender o rumo assumido pela experiência do mundo de Chris McCandless no fazer-se da sua travessia no Alasca:Diferentemente de Muir e Thoreau, McCandless foi para longe da civilização não para pensar sobre a natureza ou o mundo em geral, mas para explorar o terreno interior da sua alma. No entanto, ele logo descobriu o que Muir e Thoreau já sabiam: uma estada demorada na natureza selvagem dirige inevitavelmente nossa atenção para fora tanto quanto para dentro, e é impossível viver da terra sem desenvolver, ao mesmo tempo, uma compreensão sutil dela e de tudo que ela sustenta e um forte laço emocional com ela. As anotações de McCandless no diário contêm poucas abstrações sobre a natureza e, a propósito, poucas elucubrações de qualquer tipo. (p. 191).

Apesar de reafirmar a dicotomia conceitual entre “civilização” e “natureza selvagem”, essa passagem mostra que o tipo de hibridação que se produziu entre Chris e o ambiente não-humano em que mergulhou – por quanto esse não tivesse nada de “intocado”, mas fosse o produto de sucessivas reconfigurações recíprocas de elementos humanos e não-humanos – modificou profundamente, e simultaneamente, a maneira como ele o percebia, agia com relação a ele e o representava... o que, recursivamente, acabava remodelando-o.

E em que direção se deu esta transformação? As próprias anotações de McClandless podem nos orientar. Às margens de um capítulo de Walden ou a Vida nos Bosques de Thoreau, um dos livros que levou consigo e leu durante sua peripécia no Alasca, e concretamente o intitulado “Leis Superiores” no qual o filósofo e ambientalista reflete sobre a moralidade do comer, Chris escreveu: “Consciência da comida. Comer e cozinhar com concentração... Alimento sagrado” (p. 176, sublinhado do autor). E, nas últimas páginas do livro que usava como diário, anotou:Viver deliberadamente: atenção consciente ao básico da vida e uma atenção constante ao meio ambiente imediato e ao que lhe diz respeito, exemplo um emprego, uma tarefa, um livro; tudo exigindo concentração eficiente. (p. 177, grifo meu).

Jamais saberemos até que ponto a atenção plena que despertou em sua aventura no Alasca transformou a percepção e as representações de Chris, mas – assim como Krakauer – considero significativa a anotação que ele fez à margem de uma página de Doutor Jivago de Boris Pasternak, o último livro que leu: “FELICIDADE SÓ REAL QUANDO COMPARTILHADA” (p. 197, maiúsculas do autor). Também, como Krakauer, gosto de imaginar que Chris foi-se embora feliz:Um de seus últimos atos foi tirar uma foto de si mesmo, de pé perto do ônibus, sob o alto céu do Alasca, segurando com uma das mãos seu bilhete final, a outra erguida numa despedida corajosa, beatífica. Seu rosto está horrivelmente emaciado, quase esquelético. Mas se sentiu pena de si mesmo naquelas últimas horas difíceis – porque era tão jovem, porque estava sozinho, porque seu corpo o traíra e sua vontade o abandonara -, isso não aparece na fotografia. Está sorridente e não há como se enganar com seu olhar: Chris McCandless estava em paz, sereno como um monge que se entrega a Deus. (p. 207).

Em sua esplêndida interpretação Emile Hirsch, o ator protagonista do filme de Sean Penn, incorpora na cena final – que mostra Chris expirando serenamente, deitado no beliche do velho ônibus enrolado em seu saco de dormir – esse sorriso e este olhar impregnados de paz, quase seráficos, transparecendo uma compreensão e uma aceitação nascidas do fundo de suas vísceras, o perdão dos erros alheios antigamente tão duramente julgados e condenados, uma entrega sem mágoa e sem medo à correnteza incessante da vida.

Na natureza selvagem - Terceira e última parte: Explorando a trajetória de Chris McCandless - 1

Depois de narrar duas experiências de viagens pessoais que a leitura do livro e a visão do filme Into the wild me lembraram, quero concluir esta exploração crítica da ideia de natureza selvagem com algumas reflexões sobre a trajetória existencial que as obras que citei reconstroem.

No verão de 1990, depois da sua formatura em uma universidade de Atlanta, o jovem de 22 anos Christopher McCandless, procedente de uma família abastada da Costa Leste dos Estados Unidos, doou todo seu dinheiro a uma organização-não-governamental de combate à pobreza e sumiu de vista. Seu carro foi encontrado algum tempo depois abandonado nos arredores de um lago e com ele a maioria dos seus pertences. Havia indícios de que, no mesmo local, ele teria queimado todo o pouco dinheiro que levava na carteira. Partindo sem rumo em direção ao Oeste, mudou seu nome em Alexander Supertramp e desde aquele momento inventou para si uma nova existência, perambulando a pé ou de carona pela América do Norte e parte do México em busca de experiências nuas, de um contato com a natureza e a com vida que na visão dele não fosse “mediado”, de vivências enriquecedoras ou transcendentes, quiçá em busca de si próprio - toda experiência, afinal, é uma travessia ao mesmo tempo externa e interna, um re-definição de nós mesmos e dos nossos limites – inspirado nas narrativas de David Henry Thoreau, Liev Tolstoi e Jack London. Dois anos depois, em abril de 1992, foi de carona até o Alasca e adentrou sozinho uma região desabitada ao norte do Monte KcKinley, à margem do Parque Nacional Denali. Quatro meses depois, um grupo de caçadores de alces encontraram seu corpo em decomposição. Durante a maior parte do período que passou lá sozinho, em contato com aquilo que percebia como natureza selvagem, saiu-se muito bem. Se não tivesse sido por uns pequenos erros aparentemente insignificantes, teria saído daquela floresta alasquiana em agosto de 1992 tão anonimamente como tinha entrado. Mas tais erros custaram-lhe a vida, jogaram suas peripécias nas manchetes de jornais e televisões estadunidenses e o transformaram – dependendo das sensibilidades e visões de mundo de quem o julgava - em um símbolo de idealismo, desprendimento, coerência com nobres ideais ou de narcisismo, arrogância e estupidez.

A travessia de Chris McCandless, como disse, foi reconstruída pelo escritor Jon Krakauer no livro Na natureza selvagem, em que se baseia o homônimo filme do diretor norte-americano Sean Penn. Edgar Morin afirma que a literatura e o cinema são escolas da vida, pois acionam estratégias de pensamento que favorecem uma compreensão não reducionista dos fenômenos, estimulando a reflexão e a ressignificação da própria experiência. Já mostrei que em meu diálogo com o livro e o filme emergiram lembranças de minhas experiências pessoais. Isso me fez interrogar sobre quais anseios, quais visões do homem e da natureza teriam levado Chris McCandless primeiro a perambular pelos Estados Unidos em busca de experiências cruas, depois a empreender a travessia no Alasca onde encontraria um trágico fim. Também me interroguei sobre quais teriam sido os fatores que mais influenciaram o dramático desfecho de sua história, perguntando-me se por acaso não estariam relacionados – muito mais do que com o despreparo e uma certa dose de ingenuidade, como parece sugerir Sean Penn, ou com acasos fatais, como acredita Krakauer – com a percepção que McCandless tinha da natureza e do ser humano.

O mito da “natureza selvagem” na travessia de Chris McCandless

Chris procurou a natureza para encontrar-se a si mesmo; a percebia como algo afastado, separado dele, desejável e almejado: algo “puro”, selvagem, encarnação do belo e do verdadeiro, fonte de vida e da liberdade, de valores verdadeiros, de solidariedade e harmonia. Incorporou em seu modo de ser e em sua percepção/vivência do mundo a dicotomia conceitual natureza-sociedade, percebendo a primeira como um reino de pureza, verdade e liberdade em contraposição ao dos humanos, corrupto e cínico, materialista e violento, hipócrita e alienante.

Acredito que para compreender melhor o que Chris procurava na natureza seja preciso considerar um mito consubstancial à forma como o jovem norte-americano experienciava a realidade: o mito da “natureza selvagem”. Um mito, ou seja, uma narrativa fundante da sua maneira de conhecer, descrever e relacionar-se com o mundo. Um mito embutido na experiência do mundo de milhões de pessoas, principalmente no Ocidente, e que é ao mesmo tempo um conjunto inconsciente de axiomas que condicionam sua percepção e uma narrativa explicitada, incorporada na linguagem e as representações coletivas e individuais de muitas sociedades. Uma das obras de Jack London que mais inspiraram as peripécias de Chris pela América do Norte e mais influenciaram sua percepção do mundo incorpora este mito em seu título: The call of the wild. Ele aparece claramente nas próprias palavras de Chris. No último cartão postal que escreveu antes de adentrar uma floresta do Alasca, dirigido a um amigo que conheceu ao longo das suas peregrinações pelo Oeste norte-americano e reproduzido por Jon Krakauer no livro que reconstrói/reescreve a sua história, o jovem afirma: “Posso demorar muito até voltar para o Sul. Se esta aventura se revelar fatal e você nunca mais tiver notícias de mim, quero que saiba que você é um grande homem. Caminho agora para dentro da natureza selvagem. Alex.” (p. 15, grifo meu). O próprio Krakauer e o diretor Sean Penn, que transpôs para a tela de cinema a história das andanças de Chris que o primeiro tinha reescrito, manifestaram uma percepção do mundo totalmente imbuída deste mito ao intitularem, respectivamente, o livro e o filme Into the wild.

A idéia de “natureza selvagem”, nascida quase paralelamente nos Estados Unidos e na Europa durante a Revolução Industrial, estabelece uma separação conceitual e ontológica definitiva entre ser humano e natureza, permitindo que esta seja percebida como uma entidade imóvel, fechada, perfeita, originalmente “pura”, “virgem”, “intacta”, externa ao homem – ou, no máximo, unida a ele por um mesmo princípio transcendente que permearia ambos, mas que não afeta a sua recíproca independência – e alheia à sua percepção, às suas representações, aos seus aparelhos de observação e manipulação do mundo, às suas paixões. É um mito que emergiu com o Iluminismo – com seu rastro de racionalização do pensamento – e que conduziria tanto à Revolução Industrial como ao movimento que a esta se opunha, mas fincava suas raízes no mesmo húmus cognitivo, o Romantismo. Populações cada vez mais urbanizadas e tecnicizadas começaram a pensar-se e experienciar-se como “afastadas” da natureza e partícipes de um mundo cada vez mais “artificial”, mecanizado e racionalista – exaltado como materialização das sublimes capacidades da razão humana, em contínua e progressiva evolução, ou repudiado como fonte de alienação, hipocrisia e materialismo – produto de processos e de relações típica e exclusivamente humanos.

Essa dicotomia epistemológica permitiu que a natureza pudesse ser concebida e experienciada: 1) como uma máquina perfeitamente funcionante movida por leis imutáveis, conhecíveis através da observação e a experimentação e exprimíveis em fórmulas matemáticas universais, re-confirmando uma percepção que vinha se definindo e estabilizando desde os séculos XVI e XVII com os pensamentos de Galileu e de Descartes e transformando o ambiente não-humano em um pano de fundo das relações sociais e culturais – dele independentes – e em um reservatório de recursos a serem explorados para atender às necessidades dos homens; 2) como um santuário de vida “intocada” e “selvagem”, um exemplo de como era o mundo antes do aparecimento do homem, portanto a ser preservado afastando qualquer interferência humana de suas dinâmicas e processos concebidos como fechados e exclusivamente “naturais”, tornando o ambiente não-humano uma manifestação das idéias de “pureza”, “perfeição”, “equilíbrio”, “harmonia” capaz de despertar a sensibilidade para o belo e de estimular experiências transcendentes. É a visão de Thoreau de um Ser Universal que atravessa a natureza e liga o mundo e que o contato vivo, “direto” do homem com ela permitiria vivenciar ou a visão de John Muir do contato com a natureza como fonte da percepção da Alma Divina que permeia tudo o que existe. Experiências, estas, almejadas e procuradas por populações urbanas que se percebem separadas da natureza e da “pureza” e a “verdade” que nela enxergam. Para muitas comunidades indígenas ou tradicionais, por exemplo, o ambiente natural não é uma entidade “selvagem” ou “intocada”: é simplesmente a sua casa, ou uma mãe à qual sentem-se umbilicalmente ligadas, a fonte da sua própria existência. Não há – na maioria desses grupos humanos - procura de algum tipo de união perdida, busca de princípios transcendentes que compensem um vazio experienciado na vida diária: há apenas um dia a dia em que humanos e não-humanos (re)configuram-se/(re)moldam-se/(re)constroem-se mutuamente o tempo todo, percebendo-se como elementos constitutivos e constituintes de um único processo. Em muitas destas comunidades, falar em natureza – muito mais em “natureza selvagem” – não faz nenhum sentido, posto que não há uma “cultura” ou uma “sociedade” independentes dela e que, nessa oposição, a definam.

Essa percepção dicotômica de ser humano e natureza - que deixa órfão o primeiro e romantiza a segunda – configurou ao longo do século XIX e de boa parte do século XX não só as tendências gerais do ambientalismo e da mais recente ciência ecológica no Ocidente, mas a experiência do ambiente natural e de si próprios de inteiras gerações de contestadores e idealistas em diversas partes do planeta. Uma percepção que – apesar de auto-representar-se como seu oposto – origina-se na mesma matriz que produziu a manipulação científico-tecnológica do ambiente, a extração predatória de recursos naturais e a destruição crescente da diversidade biológica e cultural.

A idéia da “natureza selvagem” como meio para atingir uma experiência mística pessoal permeia toda a travessia de Chris pelo Oeste norte-americano e pelos meandros da sua psique, configura a totalidade da sua experiência de dois anos de peregrinações. O texto que ele rabiscou, em maio de 1992, em uma folha de compensado que tapava uma janela quebrada de um velho ônibus - que escolheu como refúgio - abandonado na floresta alasquiana onde adentrou na fase final da sua aventura faz transparecer este anseio em toda sua veemência:Dois anos ele caminha pela terra. Sem telefone, sem piscina, sem animal de estimação, sem cigarros. Liberdade definitiva. Um extremista. Um viajante estético cujo lar é a estrada. Fugido de Atlanta, não retornarás, porque “o Oeste é o melhor”. E agora depois de dois anos errantes chega à última e maior aventura. A batalha final para matar o falso ser interior e concluir vitoriosamente a revolução espiritual. Dez dias e noites de trens de carga e pegando carona trazem-no ao grande e branco Norte. Para não mais ser envenenado pela civilização, ele foge e caminha sozinho sobre a terra para perder-se na natureza. (p. 172, sublinhado do autor).

A sociedade humana como reino de falsidade e hipocrisia, lugar que envenena, em contraposição à natureza como fonte de verdade e pureza, cuja experiência direta – “perder-se” nela - tornará possível “matar o falso ser interior” e realizar uma radical transformação espiritual. Uma transformação que erradicasse suas frustrações e suas mágoas, a decepção que ele tinha de seu pai – que educou-lhe com uma rígida moral, mas Chris tinha descoberto que antes de ir viver com a mãe dele tinha duas relações conjugais – e de sua mãe, que acreditava que não entendesse seus anseios e fosse desmedidamente materialista; uma transformação que o ajudasse a atingir os ideais tolstoianos de despojamento, ascetismo e rigor moral que o inspiravam e a vivenciar uma fusão espiritual com a natureza semelhante à de Thoreau, objetivos dos quais fazia depender sua realização pessoal, o próprio significado de sua existência. Chris procurou o contato com a natureza em busca de uma cura para a sua alma, acreditando que ela pudesse preencher o vazio que sentia; mas tinha sido ele mesmo a criá-lo separando-a de si, enrijecendo as suas convicções éticas e estéticas a ponto de não saber compreender nem perdoar os erros alheios, transformando o universo das relações humanas – as que desenvolvem-se na sociedade urbana, pois as que surgiam na estrada ou em pequenas comunidades de pessoas à margem da sociedade, tolstoianamente, eram para ele mais “verdadeiras” – em um inferno de falsidade, materialismo, cinismo. As suas representações configuravam um mundo estilhaçado, uma dilaceração que se instalou nas suas próprias entranhas e lhe produziu dor, frustração e vazio. Ao procurar uma floresta “intocada”, Chris não buscava a natureza: buscava a transformação de si mesmo. E atribuía à “natureza selvagem”, uma entidade “pura” e “verdadeira” dele separada, mas com a qual poderia fundir-se espiritualmente através do contato direto, a capacidade de realizar esta transformação.

Ao longo da sua travessia de dois anos, Chris parece ter conseguido experienciar o que estava buscando, conferindo propósito e significado à sua vida, como aflora de uma carta que enviou em abril de 1992 a um ancião com quem estabeleceu uma profunda amizade. Os conselhos que dá a seu amigo manifestam toda a felicidade que o estilo de vida que decidiu adotar estava lhe proporcionando:A alegria da vida vem de nossos encontros com novas experiências e, portanto, não há alegria maior que ter um horizonte sempre cambiante, cada dia um novo e diferente Sol. (...) Você está errado se acha que a alegria emana somente ou principalmente das relações humanas. Deus a distribuiu em toda a nossa volta. Está em tudo e em qualquer coisa que possamos experimentar. Só temos de ter a coragem de dar as costas para nosso estilo de vida habitual e nos comprometer com um modo de viver não convencional. (p. 68).

Sean Penn, no filme que reconstrói a história do jovem norte-americano, o faz dialogar com uma maçã que colheu no caminho e está comendo sentando numa ponte: uma cena que deixa transparecer todo o prazer sentido por Chris ao comer algo que lhe foi “ofertado” espontaneamente pela natureza, o que representa a materialização de uma experiência esperada e buscada.

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