sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Na natureza selvagem - Terceira e última parte: Explorando a trajetória de Chris McCandless - 1

Depois de narrar duas experiências de viagens pessoais que a leitura do livro e a visão do filme Into the wild me lembraram, quero concluir esta exploração crítica da ideia de natureza selvagem com algumas reflexões sobre a trajetória existencial que as obras que citei reconstroem.

No verão de 1990, depois da sua formatura em uma universidade de Atlanta, o jovem de 22 anos Christopher McCandless, procedente de uma família abastada da Costa Leste dos Estados Unidos, doou todo seu dinheiro a uma organização-não-governamental de combate à pobreza e sumiu de vista. Seu carro foi encontrado algum tempo depois abandonado nos arredores de um lago e com ele a maioria dos seus pertences. Havia indícios de que, no mesmo local, ele teria queimado todo o pouco dinheiro que levava na carteira. Partindo sem rumo em direção ao Oeste, mudou seu nome em Alexander Supertramp e desde aquele momento inventou para si uma nova existência, perambulando a pé ou de carona pela América do Norte e parte do México em busca de experiências nuas, de um contato com a natureza e a com vida que na visão dele não fosse “mediado”, de vivências enriquecedoras ou transcendentes, quiçá em busca de si próprio - toda experiência, afinal, é uma travessia ao mesmo tempo externa e interna, um re-definição de nós mesmos e dos nossos limites – inspirado nas narrativas de David Henry Thoreau, Liev Tolstoi e Jack London. Dois anos depois, em abril de 1992, foi de carona até o Alasca e adentrou sozinho uma região desabitada ao norte do Monte KcKinley, à margem do Parque Nacional Denali. Quatro meses depois, um grupo de caçadores de alces encontraram seu corpo em decomposição. Durante a maior parte do período que passou lá sozinho, em contato com aquilo que percebia como natureza selvagem, saiu-se muito bem. Se não tivesse sido por uns pequenos erros aparentemente insignificantes, teria saído daquela floresta alasquiana em agosto de 1992 tão anonimamente como tinha entrado. Mas tais erros custaram-lhe a vida, jogaram suas peripécias nas manchetes de jornais e televisões estadunidenses e o transformaram – dependendo das sensibilidades e visões de mundo de quem o julgava - em um símbolo de idealismo, desprendimento, coerência com nobres ideais ou de narcisismo, arrogância e estupidez.

A travessia de Chris McCandless, como disse, foi reconstruída pelo escritor Jon Krakauer no livro Na natureza selvagem, em que se baseia o homônimo filme do diretor norte-americano Sean Penn. Edgar Morin afirma que a literatura e o cinema são escolas da vida, pois acionam estratégias de pensamento que favorecem uma compreensão não reducionista dos fenômenos, estimulando a reflexão e a ressignificação da própria experiência. Já mostrei que em meu diálogo com o livro e o filme emergiram lembranças de minhas experiências pessoais. Isso me fez interrogar sobre quais anseios, quais visões do homem e da natureza teriam levado Chris McCandless primeiro a perambular pelos Estados Unidos em busca de experiências cruas, depois a empreender a travessia no Alasca onde encontraria um trágico fim. Também me interroguei sobre quais teriam sido os fatores que mais influenciaram o dramático desfecho de sua história, perguntando-me se por acaso não estariam relacionados – muito mais do que com o despreparo e uma certa dose de ingenuidade, como parece sugerir Sean Penn, ou com acasos fatais, como acredita Krakauer – com a percepção que McCandless tinha da natureza e do ser humano.

O mito da “natureza selvagem” na travessia de Chris McCandless

Chris procurou a natureza para encontrar-se a si mesmo; a percebia como algo afastado, separado dele, desejável e almejado: algo “puro”, selvagem, encarnação do belo e do verdadeiro, fonte de vida e da liberdade, de valores verdadeiros, de solidariedade e harmonia. Incorporou em seu modo de ser e em sua percepção/vivência do mundo a dicotomia conceitual natureza-sociedade, percebendo a primeira como um reino de pureza, verdade e liberdade em contraposição ao dos humanos, corrupto e cínico, materialista e violento, hipócrita e alienante.

Acredito que para compreender melhor o que Chris procurava na natureza seja preciso considerar um mito consubstancial à forma como o jovem norte-americano experienciava a realidade: o mito da “natureza selvagem”. Um mito, ou seja, uma narrativa fundante da sua maneira de conhecer, descrever e relacionar-se com o mundo. Um mito embutido na experiência do mundo de milhões de pessoas, principalmente no Ocidente, e que é ao mesmo tempo um conjunto inconsciente de axiomas que condicionam sua percepção e uma narrativa explicitada, incorporada na linguagem e as representações coletivas e individuais de muitas sociedades. Uma das obras de Jack London que mais inspiraram as peripécias de Chris pela América do Norte e mais influenciaram sua percepção do mundo incorpora este mito em seu título: The call of the wild. Ele aparece claramente nas próprias palavras de Chris. No último cartão postal que escreveu antes de adentrar uma floresta do Alasca, dirigido a um amigo que conheceu ao longo das suas peregrinações pelo Oeste norte-americano e reproduzido por Jon Krakauer no livro que reconstrói/reescreve a sua história, o jovem afirma: “Posso demorar muito até voltar para o Sul. Se esta aventura se revelar fatal e você nunca mais tiver notícias de mim, quero que saiba que você é um grande homem. Caminho agora para dentro da natureza selvagem. Alex.” (p. 15, grifo meu). O próprio Krakauer e o diretor Sean Penn, que transpôs para a tela de cinema a história das andanças de Chris que o primeiro tinha reescrito, manifestaram uma percepção do mundo totalmente imbuída deste mito ao intitularem, respectivamente, o livro e o filme Into the wild.

A idéia de “natureza selvagem”, nascida quase paralelamente nos Estados Unidos e na Europa durante a Revolução Industrial, estabelece uma separação conceitual e ontológica definitiva entre ser humano e natureza, permitindo que esta seja percebida como uma entidade imóvel, fechada, perfeita, originalmente “pura”, “virgem”, “intacta”, externa ao homem – ou, no máximo, unida a ele por um mesmo princípio transcendente que permearia ambos, mas que não afeta a sua recíproca independência – e alheia à sua percepção, às suas representações, aos seus aparelhos de observação e manipulação do mundo, às suas paixões. É um mito que emergiu com o Iluminismo – com seu rastro de racionalização do pensamento – e que conduziria tanto à Revolução Industrial como ao movimento que a esta se opunha, mas fincava suas raízes no mesmo húmus cognitivo, o Romantismo. Populações cada vez mais urbanizadas e tecnicizadas começaram a pensar-se e experienciar-se como “afastadas” da natureza e partícipes de um mundo cada vez mais “artificial”, mecanizado e racionalista – exaltado como materialização das sublimes capacidades da razão humana, em contínua e progressiva evolução, ou repudiado como fonte de alienação, hipocrisia e materialismo – produto de processos e de relações típica e exclusivamente humanos.

Essa dicotomia epistemológica permitiu que a natureza pudesse ser concebida e experienciada: 1) como uma máquina perfeitamente funcionante movida por leis imutáveis, conhecíveis através da observação e a experimentação e exprimíveis em fórmulas matemáticas universais, re-confirmando uma percepção que vinha se definindo e estabilizando desde os séculos XVI e XVII com os pensamentos de Galileu e de Descartes e transformando o ambiente não-humano em um pano de fundo das relações sociais e culturais – dele independentes – e em um reservatório de recursos a serem explorados para atender às necessidades dos homens; 2) como um santuário de vida “intocada” e “selvagem”, um exemplo de como era o mundo antes do aparecimento do homem, portanto a ser preservado afastando qualquer interferência humana de suas dinâmicas e processos concebidos como fechados e exclusivamente “naturais”, tornando o ambiente não-humano uma manifestação das idéias de “pureza”, “perfeição”, “equilíbrio”, “harmonia” capaz de despertar a sensibilidade para o belo e de estimular experiências transcendentes. É a visão de Thoreau de um Ser Universal que atravessa a natureza e liga o mundo e que o contato vivo, “direto” do homem com ela permitiria vivenciar ou a visão de John Muir do contato com a natureza como fonte da percepção da Alma Divina que permeia tudo o que existe. Experiências, estas, almejadas e procuradas por populações urbanas que se percebem separadas da natureza e da “pureza” e a “verdade” que nela enxergam. Para muitas comunidades indígenas ou tradicionais, por exemplo, o ambiente natural não é uma entidade “selvagem” ou “intocada”: é simplesmente a sua casa, ou uma mãe à qual sentem-se umbilicalmente ligadas, a fonte da sua própria existência. Não há – na maioria desses grupos humanos - procura de algum tipo de união perdida, busca de princípios transcendentes que compensem um vazio experienciado na vida diária: há apenas um dia a dia em que humanos e não-humanos (re)configuram-se/(re)moldam-se/(re)constroem-se mutuamente o tempo todo, percebendo-se como elementos constitutivos e constituintes de um único processo. Em muitas destas comunidades, falar em natureza – muito mais em “natureza selvagem” – não faz nenhum sentido, posto que não há uma “cultura” ou uma “sociedade” independentes dela e que, nessa oposição, a definam.

Essa percepção dicotômica de ser humano e natureza - que deixa órfão o primeiro e romantiza a segunda – configurou ao longo do século XIX e de boa parte do século XX não só as tendências gerais do ambientalismo e da mais recente ciência ecológica no Ocidente, mas a experiência do ambiente natural e de si próprios de inteiras gerações de contestadores e idealistas em diversas partes do planeta. Uma percepção que – apesar de auto-representar-se como seu oposto – origina-se na mesma matriz que produziu a manipulação científico-tecnológica do ambiente, a extração predatória de recursos naturais e a destruição crescente da diversidade biológica e cultural.

A idéia da “natureza selvagem” como meio para atingir uma experiência mística pessoal permeia toda a travessia de Chris pelo Oeste norte-americano e pelos meandros da sua psique, configura a totalidade da sua experiência de dois anos de peregrinações. O texto que ele rabiscou, em maio de 1992, em uma folha de compensado que tapava uma janela quebrada de um velho ônibus - que escolheu como refúgio - abandonado na floresta alasquiana onde adentrou na fase final da sua aventura faz transparecer este anseio em toda sua veemência:Dois anos ele caminha pela terra. Sem telefone, sem piscina, sem animal de estimação, sem cigarros. Liberdade definitiva. Um extremista. Um viajante estético cujo lar é a estrada. Fugido de Atlanta, não retornarás, porque “o Oeste é o melhor”. E agora depois de dois anos errantes chega à última e maior aventura. A batalha final para matar o falso ser interior e concluir vitoriosamente a revolução espiritual. Dez dias e noites de trens de carga e pegando carona trazem-no ao grande e branco Norte. Para não mais ser envenenado pela civilização, ele foge e caminha sozinho sobre a terra para perder-se na natureza. (p. 172, sublinhado do autor).

A sociedade humana como reino de falsidade e hipocrisia, lugar que envenena, em contraposição à natureza como fonte de verdade e pureza, cuja experiência direta – “perder-se” nela - tornará possível “matar o falso ser interior” e realizar uma radical transformação espiritual. Uma transformação que erradicasse suas frustrações e suas mágoas, a decepção que ele tinha de seu pai – que educou-lhe com uma rígida moral, mas Chris tinha descoberto que antes de ir viver com a mãe dele tinha duas relações conjugais – e de sua mãe, que acreditava que não entendesse seus anseios e fosse desmedidamente materialista; uma transformação que o ajudasse a atingir os ideais tolstoianos de despojamento, ascetismo e rigor moral que o inspiravam e a vivenciar uma fusão espiritual com a natureza semelhante à de Thoreau, objetivos dos quais fazia depender sua realização pessoal, o próprio significado de sua existência. Chris procurou o contato com a natureza em busca de uma cura para a sua alma, acreditando que ela pudesse preencher o vazio que sentia; mas tinha sido ele mesmo a criá-lo separando-a de si, enrijecendo as suas convicções éticas e estéticas a ponto de não saber compreender nem perdoar os erros alheios, transformando o universo das relações humanas – as que desenvolvem-se na sociedade urbana, pois as que surgiam na estrada ou em pequenas comunidades de pessoas à margem da sociedade, tolstoianamente, eram para ele mais “verdadeiras” – em um inferno de falsidade, materialismo, cinismo. As suas representações configuravam um mundo estilhaçado, uma dilaceração que se instalou nas suas próprias entranhas e lhe produziu dor, frustração e vazio. Ao procurar uma floresta “intocada”, Chris não buscava a natureza: buscava a transformação de si mesmo. E atribuía à “natureza selvagem”, uma entidade “pura” e “verdadeira” dele separada, mas com a qual poderia fundir-se espiritualmente através do contato direto, a capacidade de realizar esta transformação.

Ao longo da sua travessia de dois anos, Chris parece ter conseguido experienciar o que estava buscando, conferindo propósito e significado à sua vida, como aflora de uma carta que enviou em abril de 1992 a um ancião com quem estabeleceu uma profunda amizade. Os conselhos que dá a seu amigo manifestam toda a felicidade que o estilo de vida que decidiu adotar estava lhe proporcionando:A alegria da vida vem de nossos encontros com novas experiências e, portanto, não há alegria maior que ter um horizonte sempre cambiante, cada dia um novo e diferente Sol. (...) Você está errado se acha que a alegria emana somente ou principalmente das relações humanas. Deus a distribuiu em toda a nossa volta. Está em tudo e em qualquer coisa que possamos experimentar. Só temos de ter a coragem de dar as costas para nosso estilo de vida habitual e nos comprometer com um modo de viver não convencional. (p. 68).

Sean Penn, no filme que reconstrói a história do jovem norte-americano, o faz dialogar com uma maçã que colheu no caminho e está comendo sentando numa ponte: uma cena que deixa transparecer todo o prazer sentido por Chris ao comer algo que lhe foi “ofertado” espontaneamente pela natureza, o que representa a materialização de uma experiência esperada e buscada.

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