quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

O rascante sussurro da noite - 4ª e Última Parte

Parte de um conjunto de três contos que ganhou o segundo prêmio no Concurso Literário Bartolomeu Correia de Melo, organizado pela Cooperativa Cultural Universitária do Rio Grande do Norte.

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Continuação…




O dia na universidade tinha sido esgotante, os olhos de Slatko se mantinham abertos à força. Acabava de descer na parada de casa e cruzar a esquina, uma viatura da polícia militar com as luzes apagadas se aproximou dele, um instante, só conseguiu enxergar dois vultos, duas fardas sem rosto, lembra que lhe faltou o ar, uma mão apertava-lhe a boca, outras mãos torceram-lhe os braços e o empurraram para dentro, o que está acontecendo?, sua vista embaçou-se, o mundo se tornou uma tela caótica de cores borradas e tons de preto, não sabia quanto tempo passou, não conseguia respirar, ar, por favor, quero ar, não entendia as perguntas, o que querem saber?, o que querem de mim?, a sacola de plástico o sufocava, os chutes e os golpes de cassetete nas costas e na cabeça o atordoavam, por quê?, por quê isso tudo?, não enxergava mais nada, queria dormir, o sono e a dor se fundiam em seu rosto, Carol observava o céu e uma inquietação informe lhe devorava o estomago, por quê o celular de Slatko estava desligado?, ar, ar por favor, como queria dormir, só isso, dormir, talvez aquilo tudo fosse um sonho.

Aquela foto… Carol sentiu uma mão invisível agarrar-lhe o pescoço e durante uns segundos achou que iria morrer sufocada. Aquela foto divulgada no jornal e compartilhada nas redes sociais. Slatko tinha visitado a ocupação um dia antes que acabasse levando comida para Carol, roupa limpa e notícias de María José, de quem a ex-sogra estava cuidando temporariamente. Um fotógrafo do diário de maior circulação da cidade o flagraram em meio a uma vintena de mascarados. A única pessoa com o rosto descoberto. María José estava dormindo, Carol correu no banheiro e jogou água gelada na cara, o ar estava voltando aos poucos, mas um frio improviso, que parecia nascer-lhe do peito, gelou seu rosto e em segundos se infiltrou nas dobras mais íntimas do seu corpo inteiro. O celular de Slatko estava desligado, sem motivo, e aquela foto… Ele precisa saber, pensou enquanto se agasalhava inutilmente daquele frio que provinha de suas próprias entranhas. Quando aparecer, precisa saber. Mas – o frio se tornou tão intenso que a paralisou – voltará a aparecer? Uma obsessão macabra penetrou em seus ossos desde o fundo de sua alma: seu pior pesadelo, que quase todo o dia há anos a atormentava, parecia estar se tornando presságio.

A quem denunciar o desaparecimento, se foi a própria polícia provavelmente quem o levou? O centro de direitos humanos, companheiros de velha data, os primeiros que a acolheram quando chegara a Natal e a ajudaram a reconstruir sua vida, sim, eles eram os únicos que poderiam fazer alguma coisa. Tremendo de frio, a pele estremecida por uma angústia inominável, agarrou seu celular. Antes de ligar, entrou numa rede social. #CadêSlatko O grito lhe brotou das vísceras, na esperança de que alguém, quem quer que fosse, o escutasse e compartilhasse.

De repente, viu. Não sabia quantas horas haviam passado, se estava sonhando ou desperto, o corpo cravado de hematomas, as feridas internas, a pele queimada, rasgada, nada disso importava, não sentia mais dor, mesmo enquanto seguravam sua cabeça num balde cheio d’água, não conseguia respirar, mas o que importava?, naquele instante, enquanto simulavam afoga-lo para que confessasse que tinha depredado a Câmara Municipal e delatasse os demais participantes da ocupação, naquele instante ele viu. Viu Miroslav, viu sua casa em Mostar, viu homens armados, viu o pai de Miroslav, sérvio-bósnio casado com uma muçulmana, viveram anos juntos, criaram juntos a filha do primeiro casamento dela com um bósnio-croata, se amavam, mas alguns diziam que aquilo era uma aberração, que a origem de todos os males dos sérvios da Bósnia era a convivência com os muçulmanos e os croatas, era preciso limpar a nação, começando pelas famílias, e as pessoas acreditavam. Viu Miroslav, aos quinze anos, apontando um revólver para a irmã, obrigando-a a se despir na frente de outros homens que observavam a cena encorajando-o, excitados, o viu ficar de pau duro, ele que nunca antes tinha transado, mas em cujas fantasias a primeira e até então única inspiração tinha sido a própria irmã, o viu violentá-la repetidamente na frente de dezenas de homens, o viu extasiar-se com seus gritos de pânico e horror, gozar com suas lágrimas e sofrimento, viu a irmã de Miroslav sendo estuprada por toda a milícia antes de ser amarrada a uma árvore e ter os genitais mutilados a facadas e finalmente, quase um ato de piedade, ser crivada de balas. Viu Miroslav atirar a queima-roupa em seu pai que não quis entregar sua esposa à milícia, traidor da causa sérvia. Viu a mãe de Miroslav estuprada por uma matilha de milicianos na frente dele e depois decapitada, a cabeça dela empalada junto a dezenas de outras, e viu Miroslav excitado, imbuído de violência e de ideais de pureza, o viu torturar, estuprar, assassinar dezenas, centenas de pessoas, sem culpa, às vezes com medo, com a convicção íntima, a certeza irremovível de que estava agindo pelo bem de seu povo. Viu relâmpagos, cortes, fragmentos esparsos do mosaico de uma adolescência, uma adolescência que o curso da história incentivara a abafar, na tentativa vã de erradica-la da consciência. Uma adolescência impronunciável, que não conseguia articular em palavras e assim parecia ter desvanecido da memória. Quando voluntários de uma ONG o tinham resgatado das ruas, em Bolonha, não lembrava seu nome nem como tinha chegado até lá. Não tinha documentos, era preciso começar do zero. Então se autobatizara Slatko, que em sérvio que dizer doce e é também o nome de uma compota que pode ser feita com frutas ou pétalas de rosa. Naquele instante, enquanto os descendentes dos capitães-do-mato o afogavam, ele viu.

Tinham passado poucas horas, mas #CadêSlatko já era um viral nas redes sociais e o telejornal do meio dia repercutira o desaparecimento de um suposto envolvido na ocupação da Câmara. Talvez tivesse sido isso a salvá-lo, ou talvez o fato dos sequestradores terem descoberto a tempo que era um professor universitário, um favelado ou um estudante da periferia com certeza não teriam tido a mesma sorte. Foi encontrado vivo, desmaiado e com sinais evidentes de tortura, à margem da BR na entrada da cidade.

Fugiram por alguns dias para uma casa de pescadores no topo de uma duna num viçoso rincão do litoral potiguar, onde o Rio Tubarão penetra docemente, qual amante delicado, na imensidão acolhedora do Atlântico e manguezais, praia, dunas e caatinga entrelaçam-se numa dança inebriante e imprevisível. Um céu límpido respingado de estrelas, o farfalhar das folhas dos mangues ao vento, o canto das ondas ao longe: a noite ia tecendo um leve sussurro ao redor do mundo, que se tornava estrídulo e rascante enquanto Carol lembrava, contando a Slatko o que achava que ele precisava saber.

Lorenzo, o primeiro homem com quem tinha compartilhado muito mais do que noites de gozo, a aguardava imóvel, o olhar inquieto, o que houve?, uma angústia indizível nascia-lhe do fundo da garganta, fazia anos que as Abuelas investigavam sua origem, a obsessão que o atormentava desde que descobrira que era filho de desaparecidos, e finalmente tinham descoberto a identidade de sua mãe, Carol não entendeu, Lorenzo deveria estar radiante, aguardava aquele momento há anos, por quê aquela angústia?, afinal quem era sua mãe? Florencia Menotti, uma estudante de Rosario desaparecida em julho de 1976. Carol sentiu seu corpo estilhaçar-se, como se um rio em cheia violenta tivesse transbordado de seu útero, despedaçando-a. Florencia Menotti, sua mãe, era também a mãe de Lorenzo, o homem com quem tinha concebido María José.


Encostou a cabeça no peito de Slatko, que acariciou seu cabelo. Cabelo macio, levemente ondulado, que parecia acompanhar o canto das cigarras daquela noite clara, de uma suavidade dilacerante. O cheiro delicado do cabelo de Carol apaziguou por uns instantes a ânsia informe que escorria em suas veias. Ela também precisa saber, pensou. Quis abrir a boca, mas deixou para lá. Não tinha certeza de qual vida tinha vivido realmente, a de Miroslav ou a de Slatko. Talvez nenhuma delas. O eco das ondas, desde a restinga, acalentava o ar enquanto a noite engolia seus vultos abraçados.

Um galho na correnteza

Um dique se estraçalhou em suas entranhas. Uma correnteza brutal a invadiu, permeando cada interstício de sua pele. Seu estrondo a inebriava e, ao mesmo tempo, a assustava. Se sentiu um tronco à deriva com apenas um galho tenuemente preso a uma rocha, resistindo em vã à correnteza que jogava selvagemente suas águas ao abismo de uma catarata. Os lábios de Luciana se aproximavam, lânguidos, acolhedores, e um calafrio de vontade e de medo percorreu sua coluna. Suas profundezas umedeceram-se. O galho quebrou-se. Deixou que os lábios de Luciana acariciassem os seus, envolvendo-os aos poucos num abraço cálido, e libertou as correntes de sua língua que se jogou numa dança frenética, um esconde-esconde molhado entre grutas cujos rincões mais remotos iam sendo, vagarosamente, desbravados. Beijava uma mulher pela primeira vez em sua vida, e não sentia culpa. Lentamente, na dança das línguas e nas viagens inicialmente tímidas, e aos poucos cada vez mais sedentas de suas mãos pela geografia insinuante do corpo da amiga, o medo diluiu-se até dissipar-se no vórtice daquele encontro de peles inquietas. O silêncio, riscado apenas pelo uivar do vento, filtrava a respiração entrecortada e os leves gemidos que, pelas brechas da tenda, perdiam-se no céu noturno daquele rincão de Patagônia austral.

Trecho de um conto em gestação que aprofunda o passado da protagonista feminina de O RASCANTE SUSSURRO DA NOITE, que está sendo publicado por partes neste blog:

1ª Parte: http://ocondorerrante.blogspot.com.br/2014/02/o-rascante-sussurro-da-noite-1-parte_20.html
2ª Parte: http://ocondorerrante.blogspot.com.br/2014/02/o-rascante-sussurro-da-noite-2-parte.html
3ª Parte: http://ocondorerrante.blogspot.com.br/2014/02/o-rascante-sussurro-da-noite-3-parte.html

domingo, 23 de fevereiro de 2014

O rascante sussurro da noite - 3ª Parte

Parte de um conjunto de três contos que ganhou o segundo prêmio no Concurso Literário Bartolomeu Correia de Melo, organizado pela Cooperativa Cultural Universitária do Rio Grande do Norte.
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Continuação... (Clique aqui para ler a primeira e aqui para ler a segunda parte do conto).

Slatko se considerava um pacifista irredutível, um praticante convicto da não-violência. Acreditava que a violência só gerava violência, desencadeava mais repressão, afastava a simpatia da maioria das pessoas das causas dos movimentos sociais e não transformava nada, pois – sustentava - só o diálogo e a construção coletiva, dentro ou fora das instâncias de mediação constituídas, mas sempre respeitando o outro e enxergando nele humanidade, produziria transformações efetivas. Talvez acreditasse nisso tudo porque não seria capaz de machucar ninguém nem de destruir o que quer que fosse, assim pelo menos pensava.

Às vezes essa convicção sofria abalos inesperados, inexplicáveis. Anos antes, ainda casado, tinha tido um caso com uma garota que conhecera durante uma palestra ministrada na universidade. A moça, fingindo interessar-se em suas ideias, conseguira arrancar-lhe o número de celular e insinuara-se maliciosamente pelos interstícios de um casamento que estava ruindo, deixando-lhe vislumbrar, num jogo sensual de mostra e esconde, a possibilidade de emoções sexuais havia tempo esquecidas. Por fim, deixara-se enredar na teia costurada ao redor de seus desejos pela misteriosa garota, mas só depois de transar com ela pela primeira – e única – vez, decepcionado, só então percebera que tinha se tornado uma obsessão para ela. Quis cortar qualquer contato, mas era tarde. Driiiiiim, driiiiiim, driiiiiim, o celular tocava sem parar, driiiiiim, driiiiiim, driiiiiim, todo dia, a qualquer hora, driiiiiim, esse som se convertera em pesadelo, mantinha o celular desligado o dia inteiro, mas sua esposa começara a suspeitar, até o inevitável acontecer e Slatko não ter mais como esconder a traição que tinha perpetrado e a perseguição que estava sofrendo. Seu casamento afundara, sentira-se atirado numa solidão da qual pensava que nunca mais teria visto a cara. Na verdade estava só há muito tempo, seu casamento tinha acabado muito antes daquele caso, mas a consciência de não ter mais um corpo quente do seu lado, um cheiro em que mergulhar suas ansiedades, outra solidão onde se agarrar, outro abismo insondável em que se perder fora uma chicotada em seu rosto. Trocara o número de celular e se livrou da perseguição, mas cada vez que pensava naquela garota que estraçalhara a ilusão de sua vida de casado era invadido por uma pulsão irrefreável de destruição, um desejo selvagem de espanca-la, com brutalidade, de ver jorrar seu sangue, de escutar seus gritos desesperados por piedade, seus gemidos de dor e de medo. Em relâmpagos fugazes, que o espantavam, se surpreendia imaginando-a amarrada a um pedaço de pau, nua, enquanto ele a esbofeteava com violência, vendo seu rosto sangrar, e depois se via arrancando-lhe os mamilos a mordidas, enfiando-lhe o dedo na vagina até rasgar seus tecidos internos, e em seguida cortando seu clitóris com uma faca e enfiando-o, ensopado de sangue, na boca dela. Por ínfimos, assustadores instantes se percebia gozando, embriagando-se dum prazer desconcertante ao torturar aquela garota na imaginação. Mas, assim que esses relâmpagos surgiam, os afastava veementemente, os reprimia com a mesma violência que via desatar-se naquelas fantasias.

Ultimamente, surtos de violência imaginária vinham brotando com frequência em efêmeros devaneios acordado. Vivia em uma cidade concebida e organizada para automóveis, uma cidade em que pedestres e usuários de transporte coletivo como ele, aos olhos da maioria dos motorizados, ou seja, dos descendentes dos senhores de escravos e daqueles que se iludiam estar nesse seleto rol por andarem sobre quatro rodas, tinham mais ou menos o mesmo valor, e os mesmos direitos, de um cuspe na calçada, e estas, as calçadas, um bem tão escasso em Natal quanto a água no Sertão, o que obrigava todo dia os transeuntes a arriscarem a vida disputando tirinhas de espaço de ruas e avenidas com os carros, quando existiam eram amiúde usurpadas pelos veículos privados, como as terras indígenas o foram pelos “civilizadores”. Um estrondo infernal sacudia às vezes sua consciência em pleno dia, no trajeto até a parada do coletivo, e se via imaginando – e desejando com inusitada intensidade – a explosão dos carros indevidamente estacionados nas calçadas, se regozijava com a imagem da chama engolindo as ferragens, dos rostos dos donos invadidos pelo desespero, se embriagava com o delírio de arrancar de seus veículos os motoristas que não paravam nas faixas dos cruzamentos para deixar passar os pedestres e de esmagar seus rostos nos vidros das janelas de seus próprios carros, e toda vez que ficava meia hora, quarenta, cinquenta minutos aguardando sob um sol abrasador um ônibus que chegava cuspindo gente pelas janelas, às vezes nem parando e obrigando-o a aguardar mais ainda, cada vez que seus braços doíam pelos malabarismos que era obrigado a inventar para se segurar naqueles paus de arara urbanos, um ódio profundo, inaudito, emergia incontrolável da região mais longínqua de seu ser e desejava, em seu íntimo, cobrir o rosto e sair destroçando ônibus, tocar fogo neles e em suas garagens, arrancar catracas e jogá-las nas caras dos donos das máfias do transporte coletivo, contemporâneos traficantes negreiros, e de seus lacaios nos poderes municipais. Um ódio que durava segundos, às vezes minutos, e que lutava tenazmente para empurrar de volta no rincão obscuro de onde tinha fugido, deixando-o apavorado pelo que era capaz de pensar e sentir. Não, ele era um pacifista, um não-violento, um homem sensível e delicado que jamais praticaria nem compactuaria com qualquer violência, por quão justificada pudesse parecer-lhe.

Nas fotos da ocupação da Câmara divulgadas pela imprensa, Carol aparecia sempre com o rosto coberto. Não condenava as pichações e a depredação que uns companheiros de luta tinham feito antes de saírem do prédio, mas não tinha participado daqueles atos.


Continua...

sábado, 22 de fevereiro de 2014

O rascante sussurro da noite - 2ª Parte

Parte de um conjunto de três contos que ganhou o segundo prêmio no Concurso Literário Bartolomeu Correia de Melo, organizado pela Cooperativa Cultural Universitária do Rio Grande do Norte.
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Continuação... Clique aqui para ler a primeira parte do conto.

Carol militava em movimentos sociais desde sua chegada a Natal, talvez à procura desse chão. Tinha nascido em Rosario, acreditava que na família de um empresário bem sucedido, acreditava até que as Abuelas de Plaza de Mayo lhe jogassem na cara, reforçada por documentos perturbadores, sua verdadeira origem: tinha nascido num centro de detenção clandestina durante a ditadura militar, entre uma sessão e outra de torturas à mãe dela, uma presa política que logo após seu nascimento fora assassinada e cujo cadáver feito desaparecer. Quanto ao pai biológico, nem as Abuelas tinham conseguido identificar sua identidade e paradeiro. Quis não acreditar, recusou o teste de DNA, entrou em depressão, a dúvida a dilacerava, acabou fazendo o teste que confirmou a verdade, pensou em se suicidar, fez terapia, rasgou as fotos de infância com seus pais adotivos, cúmplices dos generais cuja recompensa pelo apoio à repressão fora ela, fugiu de casa, viveu por um ano de favor em casas de militantes dos direitos humanos, à deriva, mudou-se para Buenos Aires e lá conheceu outro filho de desaparecidos, se apaixonou, teve uma menina, viveu feliz por cerca de um ano, mas a felicidade não tinha como durar, escondida nas malhas da tessitura do destino uma lâmina estava pronta para cortá-la, e a cortou, então decidiu abandonar seu país e construir uma vida completamente nova. Mudou de nome, pois soube pelas Abuelas que sua mãe queria chama-la Carolina, e assim desde então se fazia chamar. Na Argentina estudava direito, ia herdar a empresa do pai e se tornar uma respeitada empresária. Só a ideia, agora, lhe causava nojo e ânsia de vomito. Em Natal estudava artes, trabalhava em projetos de uma ONG de direitos humanos, estava envolvida em movimentos estudantis, tinha casado e descasado e cuidava sozinha de sua filha de cinco anos.

Slatko não lembrava quase nada da primeira parte da sua vida. Algum trauma, que desconhecia, tinha apagado quase todas as lembranças de sua infância na Bósnia e de sua adolescência durante a guerra civil. Sabia que era sérvio, mas nem mais falava sua língua materna. Seus pais, pelo que tinham lhe contado, tinham morrido no conflito. No último ano de guerra, conseguiu sair clandestinamente do país e se refugiou na Itália. Sabia que viveu nas ruas durante um tempo. Um projeto social o tinha tirado das calçadas e dos abrigos temporários, teve a oportunidade de terminar seus estudos, depois de ir para a universidade. Formou-se em sociologia, sobreviveu com empregos precários durante anos até conhecer uma advogada natalense que fez um curso na Itália, namoraram, foi com ela para Natal, casaram, descasaram alguns anos depois, ele revalidou seu diploma e passou a dar aulas em uma universidade privada.

Slatko conhecia a origem de Carol. Mas, mesmo depois de terem desvendado amplas regiões de suas respectivas intimidades, ela não tinha querido contar-lhe muito de seu passado, um passado que jazia acorrentado no porão mais remoto de sua alma, debatendo-se violentamente para libertar-se das amarras. Ainda assim, ostentava com orgulho para todo o mundo que era filha de uma desaparecida política, era a marca indelével de seu destino, um destino que não tinha escolhido, mas do qual, uma vez conhecido, não podia nem queria eximir-se.

Carol não sabia a história de Slatko, nem ele mesmo a lembrava.

Carol tinha participado de uma recente ocupação da Câmara de Vereadores. Na primeira tentativa, os ocupantes tinham sido expulsos com a violência habitual dos descendentes dos jagunços de senhores de engenhos: spray de pimenta na cara de estudantes desarmados, com os rostos descobertos, que estavam sentados no pátio do edifício discutindo uma pauta de reivindicação, cassetetes nas cabeças, pontapés, meninas puxadas pelos cabelos e outras manifestações do típico respeito das “forças da ordem” brasileiras pelos seus cidadãos, ou melhor, pelos seus cidadãos pobres, sobretudo quando ousam abrir a boca e se fazerem ouvir. A segunda vez o movimento conseguiu ocupar a Câmara e ficar acampado alguns dias. Antes que a ordem de reintegração de posse fosse executada os manifestantes tinham desocupado espontaneamente o prédio, mas o rastro de pichações e destruição que alguns deles tinham deixado para trás insuflou um desejo de vingança e de punição exemplar naqueles que desde as Capitanias Hereditárias se consideram donos da casa do povo. Um inquérito policial tinha sido aberto e Carol, que participara do acampamento, estava nervosa havia alguns dias. Os vereadores e a polícia declaravam para a televisão e os jornais que só seriam responsabilizados os manifestantes comprovadamente envolvidos em atos de depredação. Mas ela sabia que todos, indistintamente, seriam intimidados, ameaçados e perseguidos.

Slatko apoiava os protestos, mas discordava de quem cobria o rosto e de atos violentos. Tinha tido inflamadas discussões com Carol sobre estratégias de manifestação. Carol defendia a legitimidade da violência como forma reação dos oprimidos, de sacudida das mentes brancas, falocêntricas, heterocentradas e colonizadas, considerava a pichação um ato político e estético de ressignificação de objetos e lugares e cobrir o rosto era para ela um signo, muito mais do que um gesto de proteção: era o símbolo da desintegração do individualismo na ação coletiva, anônima, das massas. Mas, e isso ela não o admitia para si própria, era também a expressão de um medo incrustado em suas vísceras, um medo incontornável, atávico, tatuado em seu corpo desde o instante em que nascera.

Continua...

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Correr...

Antes o vento o acompanhava, agora ele é o vento. Correr, não importa para onde, não importa de quem ou de quê: apenas, correr. Cruzar as entranhas úmidas da mata fechada, galhos rachando sua face, arbustos rasgando sua pele, um farfalhar distante a persegui-lo sem descanso, sem piedade, sombra indelével, produto talvez de seu próprio delírio. Fugir pela mata adentro, esconder-se dos capitães-do-mato. Correr por becos recônditos, veias ocultas e fétidas de uma maçã sem rosto, o coração eclodindo, sem fôlego, e silhuetas distantes de agentes a acossa-lo. Correr por ruas enlameadas, esconder-se entre amontoados de lixo, chafurdar em poças de esgoto, a garganta estilhaçada, o medo infiltrando-se entre as fendas da respiração retida, e fardas pretas à espreita em toda esquina. Correr, só correr, correr na madrugada, nos pesadelos e nas vigílias. Talvez, simplesmente correr se si mesmo.

Sinopse de uma história que tocou à minha porta numa madrugada qualquer e que, algum dia, tomará forma.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

O rascante sussurro da noite - 1ª Parte

Parte de um conjunto de três contos que ganhou o segundo prêmio no Concurso Literário Bartolomeu Correia de Melo, organizado pela Cooperativa Cultural Universitária do Rio Grande do Norte.

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Slatko repudiava toda forma de violência. Carol não rejeitava, eventualmente, ações políticas radicais e sempre saía às ruas com o rosto coberto, para se proteger do gás lacrimogênio e do spray de pimenta que nunca deixavam de temperar os protestos, dizia, com ou sem atos violentos por parte dos manifestantes, um reflexo condicionado herdado pelos policiais diretamente dos capitães-do-mato, mas também porque – embora não o reconhecesse para si mesma – tinha medo de ser reconhecida, vigiada, sequestrada no meio da madrugada, jogada em porões invisíveis, impossíveis de enxergar por estarem diante dos nossos olhos, um medo indizível, subcutâneo, que lhe trazia à mente cenas aterradoras cada vez que via um homem fardado, imagens de choques elétricos nos mamilos, pelos pubianos arrancados, afogamentos simulados, rádios tocando a um volume ensurdecedor, gritos encobertos, cenas povoadas por rostos desconhecidos, corpos empilhados em aviões, cadáveres se decompondo no fundo do mar, cenas que nunca tinha presenciado, nunca tinha vivido, mas pareciam escorrer em seu sangue, estavam entranhadas em seu estomago.
       
O dia se infiltrava pelas janelas do ônibus abarrotado fazendo deslizar os raios do sol da manhã entre corpos espremidos, diluindo-os numa mistura de suor e perfumes baratos. O vulto do Arena das Dunas em construção, indiferente, corria ao lado da janela e Slatko, segurando-se no encosto de um assento, navegava numa região indistinta entre o sonho e a lembrança, lutando contra o impulso de suas pálpebras, insensíveis aos apelos da conveniência, de se fecharem. Mais uma vez, não tinha conseguido dormir. Como quase toda noite, há meses, tinha acordado de madrugada com o coração explodindo-lhe na garganta, calafrios atravessando-lhe a coluna, as mãos tremendo, o ar abandonando-o, uns instantes apenas, mas suficientes para fazer-lhe perder completamente o sono e mergulhá-lo numa angústia indefinida, um remorso insondável, sem forma, sem motivo.

Não tinha dormido com Carol, embora mesmo ao lado dela muitas vezes não deixara de ficar nesse estado. Mas preferia não mostrar-se assim, não acordá-la, para não obriga-la a partilhar de outra angústia. Sabia que ela tinha seus pesadelos, mais do que suficientes para ofertar-lhe outros.

A batalha contra suas pálpebras, naquele ônibus que como todo dia reavivava a experiência dos navios negreiros, era inglória e durante alguns instantes não conseguiu vencê-las. Alguns segundos nos quais os poros de seu pau, roçado involuntariamente pelos seios de uma passageira sentada na cadeira em que estava se segurando, dilataram-se repentinamente deixando-se invadir pela mesma embriaguez nervosa de quando os dedos de Carol o acariciavam, de quando o agarrava com firmeza e cuidado para que não doesse, um cuidado que – ele sabia, mas nunca o admitiu para si mesmo nem para ela - só quem partilhava de um sofrimento comum podia entender.

Abriu os olhos percebendo-se em ereção, doendo esmagada pela cueca e as calças, e a dor o jogou de volta ao ônibus que estava prestes a chegar à sua parada. Lecionava em uma universidade particular há pouco mais de dois anos, nunca tinha se acostumado e pensava que nunca se acostumaria ao turno matutino.


Carol dizia que a pele de Slatko adquiria sabor e tonalidades em contato com sua língua. Por isso, deixava que a língua dela forjasse seu prazer como o cinzel de um escultor. Estavam juntos há quase três anos, estrangeiros cuja pátria de acolhida eram o peito um da outra. No começo fora umidade. Percorria o corpo nu de Carol vagarosamente, explorando suas dobras com os dedos, com as palmas das mãos, com a ponta da língua, detendo-se em seus rincões mais improváveis, à procura de seus cheiros mais remotos, de seus sabores mais ocultos. Gostava especialmente de roçar com seus lábios os lábios mais íntimos dela e de lambe-los logo após, de baixo para cima e de cima para baixo, inspirando as variações de aroma que iam despertando-se. Carol amava despir aos poucos o pau dele, umedecer com a ponta da língua o vale quente e úmido entre a glande e o prepúcio, percorrer com dedos brincalhões sua virilha, traçar mapas em seu ventre, seu peito e suas costas com seus mamilos túrgidos. Seus mamilos, um levemente menor que o outro, com nuances de textura e sabor que só ele conseguia perceber, até mesmo a cor deles diferia ligeiramente: cada mamilo tinha sua personalidade, única, espelho quiçá da alma inquieta e múltipla de que eram extensões.

Exploraram seus corpos durante meses, uma avidez desbravadora que após três anos de namoro tinha minguado, mas à medida que o ardor sexual ia arrefecendo a atração entre eles se fortalecia pela descoberta de afinidades – por vezes estrídulas – que os aproximaram cada vez mais. Eram muito diferentes, mas um laço visceral, cuja origem e natureza nenhum dos dois conseguia vislumbrar, parecia destinado a uni-los além de suas vontades. O fato é que estavam juntos há quase três anos e tinham-se tornado, um para a outra, o chão que ambos, durante muito tempo, tinham deixado de sentir sob seus pés.

Continua...