sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Na natureza selvagem - Terceira e última parte: Explorando a trajetória de Chris McCandless - 2

Continuação do artigo. Clique aqui para ler a primeira parte.

O preço da dicotomia sociedade-natureza

Krakauer mostra que Chris não morreu, como muitos ao saberem da sua história julgaram, por arrogância, narcisismo e falta de bom senso. Contrariamente ao que parece sugerir Sean Penn no filme que reconta sua história, não foi por falta de experiência do ambiente natural nem por desdém dos saberes, seja os da tradição como os produzidos pela civilização urbano-científica, que acabou envenenado por uma batata silvestre. Chris fez questão de levar consigo na floresta manuais e trabalhos acadêmicos que continham, sistematizados, conhecimentos muito detalhados de biologia ocidental e biologia Tanaina (uma população indígena do Alasca) sobre a flora e a fauna da região - saberes que incorporou plenamente à sua bagagem cognitiva. Antes de empreender a viagem ao Grande Norte, além do mais, realizou numerosas consultas com caçadores e exploradores experientes, cujos conselhos guardou e em diversas ocasiões pôs em prática durante a sua “última e maior aventura”.

Krakauer mostra detalhadamente que Chris nunca confundiu – como muitos comentadores do trágico desfecho da sua experiência acreditaram e como Sean Penn também sugere – duas espécies de raízes muito parecidas entre elas, uma das quais comestível e a outra venenosa. Também mostra que o erro de Chris teriam podido cometê-lo até experientes conhecedores da flora da região, inclusive indígenas, posto que o que o envenenou não foi a batata-silvestre que ele comeu, absolutamente comestível, e sim um tipo de toxina que suas sementes desenvolvem e carregam só em determinada época do ano – o final do verão – e que, antes do seu dramático fim, não sabia-se que isto acontecia, pois não constava em nenhum trabalho acadêmico de biologia e em nenhuma obra de sistematização dos amplos conhecimentos do povo Tanaina. Poucas, mínimas ingenuidades resultaram-lhe fatais, ingenuidades causadas pela radical dicotomização que operou entre uma natureza que fazia questão de experienciar como “pura”, “selvagem” – e que, para ele, de fato o foi... até o ponto de custar-lhe a vida! – e uma sociedade corruptora, cuja interferência na primeira percebia como “invasão” a ser evitada como veneno. Por isso, não levou consigo um mapa da região onde adentrou e não chegou nunca a saber que - quando o rio Teklanika em cheia lhe impediu a passagem para a margem oposta, de onde teria facilmente voltado para a “sociedade dos homens” após dois meses de vida na floresta brilhantemente encarada – se tivesse subido poucos quilômetros acima, teria encontrado uma cabana com equipamentos que teriam lhe permitido passar do outro lado. De fato, o trecho de floresta onde o jovem se instalou decidido a “perder-se na natureza” era na verdade, como mostra Krakauer, bem pouco “selvagem” no sentido de que ele mesmo impregnava esta palavra:A menos de cinqüenta quilômetros para leste encontra-se a importante rodovia George Parks. A apenas 25 quilômetros para o sul, adiante da escarpa da cadeia Exterior, centenas de turistas entram ruidosamente todos os dias no Parque Denali, por uma estrada patrulhada pelo Serviço Nacional de Parques. E ignoradas pelo Viajante Estético, espalhadas dentro de um raio de dez quilômetros do ônibus, encontram-se seis cabanas (embora nenhuma estivesse ocupada no versão de 1992) (p. 174).

De qualquer forma, antes de ficar “preso” na floresta pelo rio e de, com o avançar do verão, ver diminuir suas chances de conseguir alimento e acabar envenenado involuntariamente pelas sementes de uma batata-silvestre considerada por todos não perigosa, Chris tinha se saído excelentemente. O que a mim interessa são as transformações em sua percepção, estratégias de interação com o mundo e representações que o mergulho num ambiente não-humano produziu em Chris ao longo de sua última e, infelizmente, fatal experiência no Alasca.

Vivência da natureza e atenção plena: pistas para a reflexão a partir da experiência de Chris McCandless

Krakauer nos sugere uma pista para compreender o rumo assumido pela experiência do mundo de Chris McCandless no fazer-se da sua travessia no Alasca:Diferentemente de Muir e Thoreau, McCandless foi para longe da civilização não para pensar sobre a natureza ou o mundo em geral, mas para explorar o terreno interior da sua alma. No entanto, ele logo descobriu o que Muir e Thoreau já sabiam: uma estada demorada na natureza selvagem dirige inevitavelmente nossa atenção para fora tanto quanto para dentro, e é impossível viver da terra sem desenvolver, ao mesmo tempo, uma compreensão sutil dela e de tudo que ela sustenta e um forte laço emocional com ela. As anotações de McCandless no diário contêm poucas abstrações sobre a natureza e, a propósito, poucas elucubrações de qualquer tipo. (p. 191).

Apesar de reafirmar a dicotomia conceitual entre “civilização” e “natureza selvagem”, essa passagem mostra que o tipo de hibridação que se produziu entre Chris e o ambiente não-humano em que mergulhou – por quanto esse não tivesse nada de “intocado”, mas fosse o produto de sucessivas reconfigurações recíprocas de elementos humanos e não-humanos – modificou profundamente, e simultaneamente, a maneira como ele o percebia, agia com relação a ele e o representava... o que, recursivamente, acabava remodelando-o.

E em que direção se deu esta transformação? As próprias anotações de McClandless podem nos orientar. Às margens de um capítulo de Walden ou a Vida nos Bosques de Thoreau, um dos livros que levou consigo e leu durante sua peripécia no Alasca, e concretamente o intitulado “Leis Superiores” no qual o filósofo e ambientalista reflete sobre a moralidade do comer, Chris escreveu: “Consciência da comida. Comer e cozinhar com concentração... Alimento sagrado” (p. 176, sublinhado do autor). E, nas últimas páginas do livro que usava como diário, anotou:Viver deliberadamente: atenção consciente ao básico da vida e uma atenção constante ao meio ambiente imediato e ao que lhe diz respeito, exemplo um emprego, uma tarefa, um livro; tudo exigindo concentração eficiente. (p. 177, grifo meu).

Jamais saberemos até que ponto a atenção plena que despertou em sua aventura no Alasca transformou a percepção e as representações de Chris, mas – assim como Krakauer – considero significativa a anotação que ele fez à margem de uma página de Doutor Jivago de Boris Pasternak, o último livro que leu: “FELICIDADE SÓ REAL QUANDO COMPARTILHADA” (p. 197, maiúsculas do autor). Também, como Krakauer, gosto de imaginar que Chris foi-se embora feliz:Um de seus últimos atos foi tirar uma foto de si mesmo, de pé perto do ônibus, sob o alto céu do Alasca, segurando com uma das mãos seu bilhete final, a outra erguida numa despedida corajosa, beatífica. Seu rosto está horrivelmente emaciado, quase esquelético. Mas se sentiu pena de si mesmo naquelas últimas horas difíceis – porque era tão jovem, porque estava sozinho, porque seu corpo o traíra e sua vontade o abandonara -, isso não aparece na fotografia. Está sorridente e não há como se enganar com seu olhar: Chris McCandless estava em paz, sereno como um monge que se entrega a Deus. (p. 207).

Em sua esplêndida interpretação Emile Hirsch, o ator protagonista do filme de Sean Penn, incorpora na cena final – que mostra Chris expirando serenamente, deitado no beliche do velho ônibus enrolado em seu saco de dormir – esse sorriso e este olhar impregnados de paz, quase seráficos, transparecendo uma compreensão e uma aceitação nascidas do fundo de suas vísceras, o perdão dos erros alheios antigamente tão duramente julgados e condenados, uma entrega sem mágoa e sem medo à correnteza incessante da vida.

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