Foto: Evandro Teixeira
Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Esse samba no escuro.
Chico Buarque
Esquartejar sim, comer tua merda não?
por que caralho o fiz, por que peguei nessa lagartixa? será
que mereço este suplício? não tinha nada contra eles, nada! nunca matei nenhum!
e para que, me pergunto? para, agora que sou um velho, estar com a cara enfiada
na bosta e neste vômito que não consegui segurar? nunca fui um santo, mas
sempre cumpri meu dever, nunca trai ninguém… de muitos tinha até pena, eram uns
meninos… quando Marta fez dezoito anos e lhe dei os parabéns, não sei por que,
mas enxerguei de repente uma daquelas garotas, alguma coisa em seu olhar, uma
faísca, uma expectativa ansiosa, não sei bem, vi uma daquelas garotas e senti
estilhaços em minha garganta, foi só por alguns segundos, mas nunca o esqueci…
por que lembrei de Marta, porra? isso me estraçalha… muito mais do que esta merda
na cara, este cheiro nauseabundo, das pancadas, do que estar acorrentado neste
porão, nesta escuridão, jogado sei lá onde, num buraco qualquer do inferno…
será que mereci o inferno? eu, que sempre fui um homem íntegro… não sinto
remorso, diz ele, e deveria? não sei o que aconteceu com aquela moça, não sei o
que aconteceu com nenhum deles, para que remexer com o passado? meu deus, pare
com isso, me solte, me jogue num terreno baldio e deixe que me encontrem, nunca
te odiei, fiz aquilo que me mandavam, sou uma pessoa de bem… Marta deve estar
devastada com meu sumiço, e Lourdes… deus queira que não tenha tido um infarto…
meu deus, faz que seja um pesadelo… será que eles sentiam o mesmo? será que
também rezavam em silêncio?… talvez pensassem em suas famílias, na angústia que
devia torturar os seus pais… sempre fui forte, sou homem, mas a porra dessas
lágrimas, puta que pariu, não desçam cacete! não quero chorar… quer saber? vão
se foder! querem rolar? que rolem… só ele está me vendo… será que vai limpar
essa porcaria na minha cara?
Emanoel observava, imóvel, o velho homem amarrado na
cadeira. Tinha começado a chorar em silêncio como, décadas atrás, ele mesmo
fizera tantas vezes. O deviam estar atravessando a mesma impotência, a mesma
incredulidade, o mesmo medo. Quem sabe o mesmo senso de ridículo que tudo
aquilo, então, lhe despertava. Se é que este tipo de gente sente alguma coisa,
pensou. Muitas vezes, pendurado no pau-de-arara, enquanto cada pancada ressoava
em suas vísceras, se perguntara o que estariam sentindo, no que estariam
pensando eles. Não raro lhe parecera vislumbrar em seu olhar lampejos de gozo.
Por isso o enfurecia e desnorteava a teimosia daquele velho em negar qualquer
prazer, até mesmo qualquer ódio.
não, filho de rapariga, vocês nos odiavam porque
encarnávamos a resistência dos oprimidos pelo regime genocida de que você e sua
corja eram lacaios, porque éramos a consciência suja dos donos da Casa Grande
de que vocês são cães da guarda, vocês, capitães-do-mato que executam o
trabalho sujo para deixar as mãos de seus patrões imaculadas… vocês se
embriagavam de nossos gritos, se inebriavam de nosso sofrimento, tremiam de
orgasmo toda vez que nossos corpos se contorciam em espasmos, atravessados
pelos choques que aplicavam com meticuloso cuidado em nossos testículos, em
nossas línguas, em nosso anus, nos mamilos e nas vaginas de nossas
companheiras…. era um desfrute insano, um prazer rastejante, uma euforia
obscena…
cumpria ordens, diz…. não nos odiava, nem se envolvia com
política, apenas cumpria ordens… apagavam cigarros em nossa pele, enfiavam
nossas cabeças em baldes de mijo, nos abrasavam com óleo ardente, eletrocutavam
nossos genitais e apenas cumpriam ordens… e aquelas centelhas em seus olhares,
aquela excitação mal disfarçada a cada gemido nosso de dor? não, os gringos
talvez até tivessem lhes ensinado que era necessário ficar frios e impassíveis,
que estavam apenas cumprindo seu dever, mas no fundo de suas almas vocês
trepidavam, se regozijavam com nossas sevícias, eu sei, eu vi, eu senti, senti
em cada soco, em cada paulada, em cada choque, em cada aperto da minha garganta
seu deleite pornográfico…
Emanoel não esquecera um único golpe, um único tremor, uma
única lágrima de todas as que derramara naqueles dois intermináveis anos no
DOI-CODI, onde passara as primeiras semanas, e em Bangu, onde ficara até que o
exilassem em um “pacote” de presos políticos negociado por uma embaixada
estrangeira. Outros tentaram esquecer, procuraram um sentido, qualquer coisa a
que agarrar-se para recomeçar a viver, para não mergulhar num abismo sem fundo
de ansiedade, desespero e absurdo. Alguns construíram novas militâncias, se
aferraram a novas causas ou retomaram, à distância, a luta contra o regime para
que tudo o que tinham sofrido se encaixasse num desenho coerente. Outros,
ainda, não aguentaram e se suicidaram. Ele recomeçara a viver, recomeçara a
militar, até recomeçara a amar, mesmo que tivessem lhe tirado Anaí e nunca
tivesse conseguido saber em que circunstâncias fora assassinada e o paradeiro
de seus restos mortais. Muitos anos mais tarde, amigos que tinham sido
torturados com ela e que tinham sobrevivido lhe contaram que a prenderam alguns
meses depois dele, de madrugada, na casa de uma amiga numa aldeia na serra onde
achava que estaria segura. Soube que chegara à sede do batalhão onde funcionava
o centro de tortura de camisola e que, na mesma noite, fora estuprada por pelo
menos cinco homens. Depois de sabe-lo, Emanoel acordara todo dia durante anos
em plena madrugada, um suor gélido escorrendo-lhe pelas costas, náusea,
tremores e a sensação de que um garrote invisível ia esmagando-lhe lentamente a
garganta. Acreditava que iria morrer sufocado, tinha que escancarar a janela e
só aos poucos conseguia voltar a respirar. Nunca explicara à esposa os motivos.
Fora para psiquiatras, fizera terapias, mas nunca revelara para ninguém que
durante anos, toda noite, tinha sonhado com Anaí, sua jamais esquecida paixão
da juventude, a mãe do único filho que tivera em sua vida, e sonhava nela
amarrada em pé, uma corrente em cada pulso e cada tornozelo, nua, sua pele
acobreada refletindo intermitentemente feixes de uma luz oca e seu corpo
frágil, esguio tremendo enquanto sombras silenciosas de uma turba sem rosto se
aproximavam dela e a lambiam inteira, uivando, e depois a invadiam selvagemente
um por um, extasiando-se com seu gritos.
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