segunda-feira, 31 de março de 2014

Nunca Mais


Hoje, 31 de março de 2014, é um dia de luto. Exatamente 50 anos atrás, o país que escolhi como mátria adotiva foi vítima de um golpe civil-militar baseado numa mentira, sistematicamente construída e veiculada pela grande mídia: a de que a violenta derrubada do Estado de direito seria uma medida temporária de "restabelecimento da ordem" contra um (totalmente inexistente) projeto de transformar o Brasil numa "ditadura comunista" que o presidente democraticamente em exercício, João Goulart, estaria promovendo.

Essa "medida temporária" durou 21 anos, fechou o Congresso Nacional, cassou prefeitos e governadores democraticamente eleitos, implantou a censura, perseguiu, sequestrou, torturou, assassinou e fez desaparecer milhares de pessoas, exterminou inteiras comunidades camponesas e populações indígenas e executou um plano de desenvolvimento dirigido pelo capital transnacional que endividou o país, escancarou o abismo social entre os mais ricos e os mais pobres, entranhou a corrupção no seio do sistema político e econômico e semeou nas mentes e corações ideias bárbaras sobre a segurança, a justiça, os direitos humanos, a família, as minorias étnicas, culturais, religiosas e de gênero, sobre os papéis do homem e da mulher... ideias que ainda permeiam o imaginário e fundamentam práticas sociais, encarnando sua mais infame herança.

Charge de Carlos Latuff

Contra a ignorância produto de mais de vinte anos de lavagem cerebral goebbelsiana operada por uma eficientíssima sinergia entre grandes meios de comunicação, sistema educacional, produtos da indústria cultural e a herança cognitiva de cinco séculos de Capitanias Hereditárias, não está demais lembrar que o sequestro, a tortura (com requintes de brutalidade: pau de arara, álcool nos olhos e nos ouvidos, choques elétricos nos genitais e na língua, entre outras "técnicas"), o estupro (no caso das mulheres, duplamente vítimas: do regime e do machismo), o assassinato e o desaparecimento de cadáveres não foram práticas episódicas, ocasionais nem muito menos restritas àqueles que praticavam a luta armada contra a ditadura.

A tortura, o assassinato, o desaparecimento de pessoas e o extermínio perpetrado das mais diversas formas (inclusive, jogando de avião alimentos envenenados - oferecidos como "ajudas humanitárias" - em aldeias indígenas, para matar de uma vez só toda a população delas e abrir caminho na construção da Transamazônica) foram práticas sistemáticas do regime que se iniciou em 31 de março de 1964, praticas que faziam parte de um plano global - friamente planejado e mecanicamente executado - de erradicação do tecido social de toda e qualquer forma de pensamento e modo de viver cuja existência ameaçasse o projeto desenvolvimentista conservador dos generais, empresários e capitais nacionais e estrangeiros que mantinham em pé a ditadura. Práticas que massacraram não poucas dezenas, nem algumas centenas, mas centenas de milhares de pessoas: povos indígenas inteiros, comunidades rurais e, nas cidades, não apenas militantes armados, mas estudantes, jornalistas, intelectuais, artistas, sindicalistas, lideranças políticas, educadores, até estilistas e crianças de um ano de idade... toda e qualquer pessoa, a maioria das quais não pegava em armas, que ao ver do regime representasse um perigo para a "segurança nacional".

Esse tipo de práticas, quando planejadas e executadas de forma sistemática, é chamado na linguagem jurídica internacional de genocídio.

Hoje é um dia de luto porque, exatamente 50 anos atrás, começava um genocídio físico e simbólico do povo brasileiro, de cujas consequências ele ainda não se recuperou.

domingo, 16 de março de 2014

A tênue fronteira entre o chão e as entranhas

Foto: Antonino Condorelli (Terra do Fogo, 2006)

O último de um conjunto de três contos que ganhou o segundo prêmio no Concurso Literário Bartolomeu Correia de Melo, organizado pela Cooperativa Cultural Universitária do Rio Grande do Norte.

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Lentamente, um homem abriu os olhos. Flutuava num torvelinho indistinto de formas e cores. Aos poucos, foram-se delineando contornos mais nítidos. Sentiu que tinha acordado. Estava nu, no coração de uma mata. Altas árvores de copas frondosas fechavam o céu, criando um ambiente úmido e escuro. Uma miríade de árvores menores, plantas, flores de diversas cores e tamanhos, cipós entrelaçavam-se numa teia intricada e a primeira vista impenetrável, densa e grávida de vida. Tênues raios de sol infiltravam-se entre as frestas deixadas pela vegetação, reverberando-se nas infinitas formas da mata circunstante, confundindo a visão. Não soprava um hálito de vento, tudo parecia imóvel, mas o homem pressentia que tudo estava em movimento, um movimento incessante que assemelhava-se a uma dança estonteante. Da mais alta árvore ao mais fino fio de relva, nada estava imóvel.

Aconteceu inesperadamente, num dia gélido de começo de outono na extremidade austral do planeta, aquele rincão que alguns gostam de chamar os últimos confins da Terra, embora talvez os derradeiros confins do mundo sejam só os da nossa mente. Meses antes tinha deixado para trás – pelo menos, assim pensava - minhas amarguras e neuroses e, agarrada uma mochila, tinha começado a perambular sem rumo pelas veredas, amiúde desgarradas, da América do Sul.

Estava atravessando a pé o Parque Nacional Tierra del Fuego respirando a plenos pulmões o ar límpido daquela manhã, fascinado por uma imponente floresta de lengas e guindos, árvores fueguinas mergulhadas num emaranhado sub-bosque de arbustos espinhosos, e devido ao meu passo deliberadamente lento e pausado os demais caminhantes com quem tinha começado a trilha já estavam fora do alcance da minha vista. O dia tinha amanhecido sereno, mas no meio da manhã o céu escureceu repentinamente e logo após começou a nevar. Em poucos minutos, o caminho na minha frente e o bosque inteiro se tornaram um óleo sobre tela de inúmeras nuances de branco e de cinza.

Os colegas da escola me apelidavam Condor. Desde pequeno, sinto uma atração avassaladora por essa ave. Para os povos dos Andes Centrais, o condor é símbolo de liberdade. Talvez seja porque mora em picos inacessíveis, porque voa tão alto como quem se liberta das amarras, dos pertencimentos e apegos, porque seus voos o aproximam do sol, porque pode penetrar nas nuvens, se impregnar de vento, olhar a terra e os seres que a habitam desde uma altura de onde toda e qualquer fronteira revela inelutavelmente sua natureza ilusória. A primeira vez que tinha visto um condor ao vivo, porém, não tinha sido no céu, mas na terra, na estepe patagônica aos pés dos Andes da província de Santa Cruz, enquanto devorava a carcaça de um cordeiro. Aconteceu dias antes daquela manhã de outono. Foi desse jeito brutal que descobri que o condor, esta majestosa ave de inatingíveis voos, é também um abutre que se alimenta de carniça.

Avançava com dificuldade, afundando meus pés numa camada de neve cada vez mais espessa e na lama em que a terra debaixo dela tinha se transformado. O vento jogava rajadas de neve na minha cara cortando-a de frio, molhando e embaçando meus óculos e impedindo-me enxergar nitidamente o caminho. Meus músculos enrijeceram-se, sentia meu estômago despedaçar-se, acreditava que iria vomitar meu coração. Me senti só, uma solidão infinita como a daquele bosque indiferente, fria como aquela manhã que em poucos minutos tinha me jogado nas garras dos meus mais sádicos demônios.

Respirei fundo, pensei que só precisava continuar pelo caminho que estava percorrendo, que apesar da neve impedir enxergar muito longe havia apenas que seguir pela pista já aberta no meio do bosque e que em algum momento, mais cedo ou mais tarde, iria desembocar na estrada que me levaria até a saída do parque. Segui em frente, lutando ferozmente contra o fantasma que tentava me possuir e, inutilmente expulso da cabeça, se infiltrava sorrateiramente pelas frestas do meu intestino. Um fantasma que não tinha como afastar e me jogava na cara, a cada instante, o pesadelo de não ter forças suficientes para chegar até o fim, de me perder no meio da nevasca que poderia apagar a senda, de morrer de frio e fome antes de reencontrar o caminho. Só escutava o estridor do vento; se algum pássaro cantasse, se o sub-bosque produzisse sons que sugerissem a presença de algum animal nos arredores, se um galho se quebrasse não o perceberia.

Melodias envolventes entremeavam-se a alaridos estridentes, cantos politonais, acordes arrítmicos, agudos desafinados ou harmonicamente compassados que compunham uma sinfonia que embalava e sacudia, abraçava e chocalhava. Seres estranhos pululavam por todo lado, silenciosamente ou gemendo, produzindo cantigas, sussurros, sibilos, grunhidos e sons indecifráveis, buscando-se, pegando-se, batendo-se ou ignorando-se.

Seres alados de todos os tamanhos povoavam os galhos, tingindo-os com plumagens vibrantes ou confundindo-se com a vegetação, com bicos enormes e coloridos ou fininhos e discretos. Seres alongados, rastejantes, de peles de aparência viscosa de vez em quando apareciam entre as pedras ou pendurados nas árvores. Seres peludos, de manto levemente dourado ou cinza escuro com listras brancas, ou avermelhado com jubas escuras, com pernas, braços e mãos semelhantes aos humanos apareciam aqui e acolá entre os galhos e nos cipós, brincando, colhendo frutas ou simplesmente observando, curiosos, o homem. Miríades de pequenos seres de aparência preta ou avermelhada, de diferentes tamanhos, formando longas filas compactas ou em pequenos grupos atravessavam os chão, galgavam as pedras, subiam ou desciam pelos troncos das árvores, saindo de buracos na terra ou sendo por estes engolidos. Pequenos seres alados, das mais variadas cores e tamanhos, zuniam esporadicamente em seus ouvidos, grudavam-se em sua pele, picavam-no causando-lhe ardência e coceira, rondavam a seu redor ou simplesmente o ignoravam, ocupados em outros afazeres. Diminutos seres alados de asas coloridas, listradas ou pontilhadas com tonalidades ora vibrantes ora suaves, deslumbrantes ou apaziguantes pousavam de vez em quando em seu ombro ou esvoaçavam livres ao seu redor.

No princípio era o verbo, mas nada daquilo tinha nome. Percebeu que ele tampouco tinha um.

Como a neve espessa cobria muitas vezes os sinais do caminho, várias vezes me perdi, desemboquei em becos sem saída que davam para o boque fechado e tive que voltar nos meus passos até reencontrar o lugar a partir de onde tinha tomado a direção errada. De repente, lembrei do condor com o bico ensanguentado dilacerando as carnes de um cordeiro. Naquele instante, me senti umbilicalmente amarrado ao chão. Não importa quão longe tivesse querido e tentado fugir: o chão estava comigo, o carregava em minhas células. Mas a terra parecia tão distante, tão indiferente: estava lá, mas uma muralha imensa, intransponível a separava das minhas entranhas.

Continuando a caminhada, de algumas brechas entre as árvores vislumbrei o mar e umas ilhotas à distância. Percebi que estava costeando uma praia e, pouco depois, desemboquei nela. Na minha frente desenhava-se uma enseada rochosa cravada de arbustos, completamente coberta de neve, acariciada por um mar límpido, sereno, apesar da tormenta que o céu estava desabando na terra, de onde podiam avistar-se algumas ilhas do Canal de Beagle igualmente pintadas de branco. De repente, tão improvisamente como tinha começado, parou de nevar.

Estava encharcado, coberto de lama, cansado e ainda com alguns quilômetros de caminho pela frente, mas naquele momento, diante daquela visão inaudita para um filho dos trópicos, daquele abraço de neve e mar, nada disso me importava. Me sentei numa rocha, respirei serenamente o ar limpo daquela enseada, me deixei chicotear pelo vento que não mais me incomodava e, por não sei quanto tempo, apenas olhei e escutei. Estava só junto ao mar, às rochas, aos arbustos, ao vento, à neve e ao canto distante de alguns cormorões.

Nada daquilo tinha nome, nem ele mesmo. Mas ele nomeou. Nasceram animais, plantas, pássaros, insetos, répteis, rios e cachoeiras, folhas e rochas e, com elas, nasceu aquele homem.

Não sei quanto tempo passei lá, se adormeci ou fiquei acordado. Minha única lembrança é a visão de um homem nu no coração de uma mata úmida, longínqua daquela terra gélida onde me encontrava. Só sei que durante alguns instantes, depois de retomar a caminhada, a fronteira entre o chão e minhas entranhas me parecera mais tênue, quase invisível.

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Clique nos links abaixo para ler os outros dois contos do conjunto que ganhou o segundo prêmio no Concurso Literário Bartolomeu Correia de Melo.

O rascante sussurro da noite






sexta-feira, 14 de março de 2014

Poesia não é verso


Poesia não é negação de prosa: é faísca, desvio, gozo, é um relâmpago de improvável, é incerteza, arrepio, crespa que se abre brecha no tecido liso da palavra. Poesia é o cotidiano aos olhos de um viajante. Poesia não é verso: é a palavra instável, inadequada, obscena, inútil, por isso mesmo a palavra imprescindível, onde quer que desabroche. Poesia é sujeira, é merda, é esperma, é mijo, é vômito, é medo, é neurose, é obsessão, é entrelinha, é a beleza, a impermanência, a verdade e a mentira de tudo isso: poesia é abrir os olhos e estar aqui. Somos todos prosadores, soltando vez por outra fagulhas de poesia.

domingo, 9 de março de 2014

"A Grande Beleza" está mais para "O Grande Engodo"


Ontem assisti, na casa de um amigo cinéfilo, La Grande Bellezza de Paolo Sorrentino, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro. Sinceramente, não o achei um filme marcante, daqueles destinados a se tornarem imprescindíveis. Me pareceu mais uma colcha de retalhos, essencialmente mal costurada, de clichês estéticos e temáticos sobre a Itália, elevando uma Roma a meio caminho entre folheto turístico e caricatura felliniana a emblema par excellance desse concentrado de lugares comuns: uma varanda com vista no Coliseu servindo de palco para noites boêmias regadas a bebida, sexo e vazio existencial; suntuosos palácios antigos repletos de estátuas, fontes, igrejas, parque constelados de ruínas de um passado que - claro! - continua estendendo sua sombra gigante e opressiva sobre o presente (o que é, afinal, a Itália para a maioria dos estrangeiros se não ruínas eternas de um glorioso passado?); um desfile de personagens grotescos, caricatos, estéreis sombras do mundo de Fellini sem nada de novo e autêntico a acrescentar debruçados sobre o vazio de uma existência mundana entremeada de tédio, a um só tempo deprimente e exuberante; a inevitável Igreja Católica com sua hipocrisia, seu apreço por riqueza e poder, suas hostes de cardeais frívolos e cínicos e suas santas pobres e de fé autêntica que resgatam os verdadeiros valores da cristandade.

Acrescente-se uma boa dose de cenas inutilmente "fellinianas" - só na superfície, sem chegar a sequer roçar o âmago autêntico, visceral do universo do mestre - totalmente desnecessárias no contexto da narrativa e teremos um coquetel perfeito para o Oscar.

Enfim, um longa "para americano (e brasileiro, etc.) ver", um produto sistemática e friamente calculado para agradar o paladar cinematográfico internacional, especialmente norte-americano, e para ganhar a cobiçada estatueta. Só não é uma obra totalmente descartável pela bela interpretação de Sabrina Ferilli, pela razoável caracterização do personagem central - o desencantado, cínico e boêmio ex-escritor Jep Gambardella - feita por Toni Servillo, e pela genialidade de alguns diálogos e monólogos.


Logo após a exibição terminar, a frase è solo un trucco (é só uma ilusão) - com a qual o protagonista encerra o longa - nos pareceu, a mim e a meu anfitrião, uma perfeita síntese da obra.

Assista o trailer de La Grande Bellezzahttp://www.youtube.com/watch?v=wKvCxmQQ3IA

sábado, 8 de março de 2014

8 de março [Conto]


Faíscas de sol escorriam por rachaduras na mata fechada e Anaíde corria, sem parar, havia horas. Não sentia mais seu corpo, não sentia suas pernas inchadas rachadas por espinhos, pedras e galhos, não sentia sua pele cortada, seus braços dormentes, o suor misturando-se ao sangue em seu rosto sulcado de escaras. Sentia apenas sua respiração entrecortada e corria, com Adelina nos braços, sem saber para onde.

O abraço do sol engolia o ônibus parado, afogando em calor corpos suados e espremidos. Araci, saia preta abaixo do joelho, blusa escura recatada de manga comprida, o cabelo forçadamente liso, violentado pela escova para esconder sua origem pagã e preso num coque, óculos escuros, subiu os degraus devagar, esforçando o frágil corpo rebentado, empurrada pela correnteza, e esgueirou sua silhueta entre as festas que se abriam no paredão humano até encontrar um canto onde se segurar. Os óculos escondiam um olho inchado, ainda dolorido, e o outro salpicado de vermelho pela insônia.

Jacira estava em pé, segurando-se num corrimão, ao lado dela. Diferentemente de Araci, não disfarçava sua negritude que brincava sinuosamente nas curvas encaracoladas de seu cabelo.

Mariana subiu na parada seguinte, os olhos esverdeados reverberando um desalento rastejante que lhe escorria pelas entranhas, mergulhada numa aflição que a isolava do calor, do suor, do aperto e de tudo o que a rodeava naquele instante, uma aflição calma, persistente, que permeava todo seu corpo. Um rapaz passou atrás dela devagar, aproveitando o espaço apertado para demorar-se, esfregando-se levemente em seus glúteos. Perdida em sua ansiedade, Mariana nem percebeu que o moço estava de pau duro.

Uma senhora sentada na janela ao lado de Francisca, poucos centímetros à frente de Mariana, levantou-se para descer e o rapaz, de reflexos impecáveis, pediu licença a Francisca e ocupou o lugar. Vestia bermuda e ao passar roçou suas pernas peludas nas coxas vigorosas e macias de Francisca, que estava de shortinho, mantendo viva assim sua ereção. Pouco depois de sentar-se, porém, uma raiva violenta o sacudiu. Sentiu nojo, arrependeu-se de ter sentado ali, mas não havia mais o que fazer: o ônibus estava lotado e ele fora um burro. Estivesse na rua, sem tanta gente ao redor, daria uma puta duma lição naquela bicha, lhe ensinaria a deixar de safadeza na peia. Ainda por cima ninguém diria que não é mulher, não fosse pelo gogó que percebeu depois que se sentara e a mapeara de soslaio dos pés à cabeça.  O pior é que era linda, uma pele cabocla marmórea, de um bronze delicado e uma sinuosidade inebriante. Porca nojenta, dava até vontade de trepá-la! Aliás, se estivesse na rua só com ela seria o que faria: a treparia e depois a arrebentaria, para deixar de ser safada. Alguém, por sinal, já devia ter lhe dado uma boa surra, pois seu belo corpo estava visivelmente cravado de hematomas.

Lucy, que subira na mesma parada de Mariana, encontrou lugar em pé bem ao lado da cadeira de Francisca, perto de Araci. Estava radiante, tinha recebido flores de sua namorada e o dia resplandecia em seus olhos.

Lucy fora tudo o que quis ser, mas quase sempre no momento errado. Quis ser mãe, quis ser puta, quis ficar com homens, quis ficar com mulheres, quis brincar, quis ser séria, quis monogamia, quis amores múltiplos e sem amarras, quis ser casta, quis ser devassa, quis ser dona de casa, quis ser artista. Mas quando quis ser mãe, a chamaram de puta. Quando quis ser puta, quiseram força-la a ser casta. Quando quis ser artista, a violentaram para que fosse dona de casa. Quando quis viver amores sem correntes, lhe cobraram monogamia. Quando quis ser monogâmica, a acusaram de ter se vendido. Fora enjaulada em ciúmes e incompreensões, tivera feridas na pele e nas vísceras, superara hematomas e insultos, paus enfiados à força e mordaças que não conseguiram calá-la. Agora era feliz, mesmo afastada de sua família, e sorvia com avidez essa inusitada felicidade.

Francisca ia para a faculdade, estava voltando às aulas depois de um par de dias de convalescência. Frequentava pela manhã porque, desde que fora expulsa de casa, trabalhava nas ruas à noite. Não era raro que apanhasse; sabia que muitos homens procuram travestis para vomitar nelas pulsões recônditas e violências recalcadas e tinha se acostumado a isso. Mas a surra de três dias antes tinha sido mais feroz que de costume. Assim que entrara no carro percebera quem era o cliente, mas como este parecera não ter entendido, ou fingira não tê-lo, ficara calada. Mas quando a penetrara de quatro e ela fingira gemer de gozo, o homem a agarrara pelos cabelos, saíra de dentro dela e começara a espanca-la com brutalidade, sem medir a força dos socos e dos pontapés, arrastrado por um devaneio de aniquilação. Suja e devassada, a pele rasgada, ensanguentada e salpicada de hematomas, fora arremessada violentamente do carro e, antes de arrancar, o homem cuspira nela e a xingara, deixando-a semi-inconsciente no asfalto. Era seu tio, o mesmo que quando criança, quando ainda era Francisco, entrava amiúde em seu quarto fingindo querer brincar, o mesmo que apoiara irrestritamente o irmão quando o jogara nas ruas após descobrir que não era homem e que vestido de mulher não o reconhecera, mas reconhecera imediatamente seu gemido de falso gozo. Fora hospitalizada, tivera que passar uns dias em casa, teria precisado descansar mais, mas preferira retornar à faculdade para não perder mais dias de aula.

Mariana estava voltando ao trabalho depois de uns dias de licença. Uma angústia dilacerante a percorria, tinha brigado feio com a mãe. Fora rejeitada como filha. O dissera entre soluços, o coração esmagado numa aflição inominável, mas não poderia ter agido de outra maneira. Tinha lhe oferecido todo apoio, tinha se disposto a ficar com a criança e a cria-la, e ainda assim a filha quis… não conseguia nem pronunciar aquela palavra… e pior, sem avisar, chegando para ela com o fato consumado. A mãe de Mariana não sabia o quanto aquela decisão tivesse despedaçado suas entranhas. Não sabia e não interessava, o que a filha fizera era inconcebível, abominável. Não importava que tivesse acontecido nas primeiras semanas, não importava que sua filha teria revivido em cada gesto, em cada respiração daquela criança o… aquela palavra também era impronunciável. Enquanto o ônibus deslizava pela avenida naquela tórrida manhã, a dor que estraçalhava as vísceras de Mariana era mais intensa da que tinha sentido na sala clandestina de cirurgia.

Jacira ia para a casa da patroa para mais um dia de serviço. Apesar dos seus patrões não raro a ridicularizarem perante os outros apresentando-a como uma negra burra mas engaçada, gostava daquela família, se sentia parte dela. Naquele dia, Jacira estava angustiada com a ausência de notícias de seu filho mais velho, de dezesseis anos, que não aparecera em casa havia dois dias. Nunca tivera tempo para dedicar-se ao filho como gostaria, mas ultimamente o tinha perdido completamente de vista e uma dor sutil, densa e indecifrável, lhe embrulhava o estômago ao pensar no que podia ter lhe acontecido. A tranquilizava um pouco saber que a filha mais nova, de nove anos, estava na escola, onde a acompanhava todo dia Raimundo, seu atual companheiro. Uma pessoa doce, tranquila, diferentes dos vagabundos bêbados com quem tinha convivido durante anos. Só não sabia, Jacira, porque acordava todo dia muito cedo, antes da filha, que Raimundo despertava sempre a menina com carícias debaixo das roupas e que, antes de leva-la para a escola, costumava brincar com ela enfiando-lhe um dedo na vagina. Não sabia, embora quando criança seu padrasto tivesse feito com ela as mesmas brincadeiras.

Araci ia para o culto matinal. Nas últimas semanas, não passara um único dia sem ser arrebentada ou trepada à força pelo marido. Não conseguia encontrar motivos para que apanhasse, nem para que fosse estuprada. Era diversão, necessidade, rotina, uma brincadeira talvez. Quando, depois de vários dias seguidos de agressões, não conseguindo mais esconder os arranhões e os hematomas, falara daquilo com o pastor, o primeiro que lhe perguntou é o que ela tinha feito para ser castigada, se tinha sido uma má esposa, mas ela sempre fora uma mulher reta, uma esposa impecável, submissa, dedicada integralmente a seu homem, como mandavam as escrituras. Não, não havia motivo, ele devia estar possuído, era a única explicação possível e o pastor concordara, mas precisava ficar calada, aguentar em silêncio e orar com todas suas forças para que o Cão saísse do corpo do marido, nada de contar para quem quer que fosse, ela era uma mulher boa e com suas orações haveria de vencer essa luta contra o mal, contra o demônio que estava pondo à prova sua fé usando como instrumento seu companheiro de lar e de cama.

Os corpos de Lucy e Araci, em pé uma ao lado da outra, iam ficando cada vez mais grudados à medida que o ônibus detinha sua marcha para engolir mais pessoas. Num relâmpago fugaz a pele de Araci foi atravessada por um calafrio rastejante, inexplicável, e de repente, assustada, percebeu que seus mamilos tinham ficado túrgidos. Sufocados pelo sutiã, pareciam querer explodir. Sem entender, deu uma rápida espiada na moça ao seu lado e aquela visão a inquietou. Baixou o olhar e rezou mentalmente uma oração. Estava excitada, teria invadido sem receios a boca delicada, de traços suaves, daquela moça desconhecida de cabelo verde salpicado de gritantes mechas roxas. Satanás, não havia dúvidas, a estava pondo à prova mais uma vez.

Improvisamente, o ônibus parou em um cruzamento e um concerto de buzinas e gritos permeou a ar daquela cálida manhã. Policiais interditavam o transito para deixar passar, na avenida perpendicular, uma manifestação. Uma profusão sinuosa, rítmica de vozes, faixas, cantos, slogans, rostos pintados e corpos multicoloridos desfilava diante do ônibus. Um calor insensato, uma umidade rascante e os poucos metros quadrados em que dezenas de corpos estavam apinhados tornavam a permanência no ônibus insustentável. Muitos passageiros desceram para aguardar a marcha passar do lado de fora; outros, curiosos, foram olhar do que se tratava. Uma torrente feminil transbordava na vizinha avenida. Compassadas melodias entremeavam slogans aguerridos, carregados de indignação e raiva.

Jacira perguntou a outra passageira o que estava acontecendo. Ela não soube responder, mas lembrou-se que era 8 de março e, como tinha quase só mulheres na manifestação, pensou que se tratasse de algum ato ligado àquela data.

Lucy se entusiasmou, desceu do ônibus exultante e decidiu mergulhar na correnteza multiforme. Tirou a blusa e o sutiã, pediu a uma manifestante que escrevesse um slogan em seu peito com o batom que tinha na bolsa e se jogou alegre na multidão dançante. Volúpia arrebatadora, arrepiante sensualidade, Araci só conseguia enxergar aquilo tudo com excitação… o sinuoso rio das manifestantes, a desinibida ousadia daquela moça desconhecida do ônibus, as melodias embriagantes daqueles cantos. Era tudo obra de Satanás, o sabia, mas Satanás lhe parecia tão provocativamente atraente naquele momento.

Francisca observava com cautela, deixava-se inundar pelos slogans que ecoavam da avenida adjacente, que a arrebatavam, e um impulso arrasador a empurrava para aquela correnteza em cheia. Mas tinha medo, um medo entranhado em suas veias que lhe secava a garganta e lhe subia pelos ossos, imobilizando-a. A vontade de mergulhar naquele compasso e deixar-se dançar a inebriava, mas o medo era tão poderoso, estava tão incrustado em suas vísceras que a deteve. Uma caminhonete do Bope acompanhava a macha à distância e alguém, em pé na caçamba com uma câmera profissional, apontava seu objetivo para algumas manifestantes. Uma gota fria percorreu as costas de Francisca. Aquelas mulheres serão vigiadas, perseguidas? Ninguém poderia prever as consequências de se envolver naquilo. Decidiu, apenas, observar. Acendeu um cigarro, encostou-se numa parede e contemplou, extasiada, aquela multidão esbanjando gozo e ira.

Jacira ligou para a patroa, que atendeu o celular em plena depilação. Hoje se sentia de bom humor e dispensou Jacira do serviço, apesar de achar inconcebível que uma manifestação pudesse parar o transito em horário de pico sem mais nem menos e a polícia, ao invés de baixar o cassetete nas manifestantes, as ajudasse a atrapalhar a vida dos motoristas e das pessoas de bem. Mas, claro, com uma comunista no poder o que era de se esperar? Às vezes dava mesmo vontade de mandar-se para Miami. De qualquer forma, hoje era melhor se Jacira não fosse: era dia da mulher e sabia que o esposo voltaria para casa na hora do almoço, com flores para ela, e a levaria para um restaurante bacana. Depois, com ninguém em casa porque os filhos iam estar na escola e Jacira fora dispensada, o convenceria a fazer algo melhor do que voltar para o trabalho. Enquanto suportava estoicamente a ingrata dor da depilação do púbis, lia no tablet a notícia da rejeição que a Globeleza daquele ano tivera por parte do público. Não é de se estranhar, pensou. Apesar de ter um corpo bonito era preta demais, feia que nem Jacira, coitada. Tudo bem que para sambar nua na tevê tinha que ser uma mulata, mas negona mesmo, daquele jeito, era demais. A demora a enervava, queria que aquele suplício terminasse logo, ia ficar bem lisinha e macia como ele gostava, hoje haveriam de se divertir, o sacrifício para agradar seu homem valeria a pena. Enquanto suportava que arrancassem os pêlos de sua vagina, não sabia que seu marido estava trepando uma colega de trabalho numa salinha contígua ao escritório dele, de quatro, como corresponde a uma rapidinha no serviço.

Jacira ficou aliviada com a decisão da patroa e pensou que se fosse até a rua paralela talvez tivesse a sorte de encontrar um ônibus na direção contrária e conseguiria voltar para a casa antes da filha sair para a escola. Estava feliz, pelo menos naquele dia teria um pouco de tempo para ela, para a filha, para o companheiro e para sair em busca de notícias de seu menino. A patroa era gente fina. Enquanto se dirigia à outra rua à procura de um ônibus para voltar para casa, sua menina ia sendo acordada por Raimundo como todos os dias. Desta vez, quem sabe Jacira chegasse antes dele leva-la para a escola.

Cintilando em letras vibrantes, palavras tatuadas em faixas, cartazes, costas, colos rasgavam o intestino de Mariana. Não conseguia esquecer o nojo, a repulsa, a dor, o medo, a vontade de se matar depois daquilo que sofrera, mas também não conseguia esquecer a dilaceração, o abalo que a sacudira ao tomar aquela decisão e, sobretudo, não conseguia esquecer o olhar severo e triste, carregado de angústia e reprovação da mãe. Uma mão invisível apertava-lhe a garganta, ia sufocando-a aos poucos. Quis respirar. Suas pernas a levaram sozinhas, porque seu querer estava paralisado. Simplesmente, entrou na correnteza e se deixou carregar. Sua boca cortou o silêncio denso de seu estômago e começou a gritar, quase autonomamente, os slogans que escutava. Não sabia o que viria depois, não sabia mais nada. Apenas, caminhava.

Araci não resistira às investidas de Satanás. Numa ruela transversal, escondida por trás de uma caçamba, deslizara avidamente sua mão por debaixo da saia e a calcinha, que transbordava tesão e umidade. Fechou os olhos e as imagens daquela moça de cabelo verde e roxo de peito nu, pequeno e rijo, branquelo mas com os mamilos levemente bronzeados, e daquela multidão envolvente, melódica, sinuosa desfilaram pela sua pele e a arrastraram numa enxurrada selvagem, embriagadora. Gozou intensamente, um gozo vivo, autêntico, como havia muito tempo não sentia, gemeu e nem cuidou de abafar seu gemido, afinal com o estrondo da rua e da marcha ninguém iria ouvi-la.

Recomposta, voltou perto do ônibus e se deteve contemplando a manifestação. Se sentia leve, feliz, embevecida de pecado. Lembrou-se do facão com que cortava verduras, aquele com que uma vez o marido brincara retalhando suas costas, ainda guardava as cicatrizes. Chegando em casa o esconderia na saia. Se o marido voltasse a encostar um dedo nela, o desembainharia e deixaria Jesus guiar sua mão. A justiça dos homens talvez a condenasse, mas tinha certeza de que Jesus não o faria, ele era misericordioso.


Anaíde corria para não ser fenda negra, abismo carnoso em que despejar gozo de branco, corria para não ser vaca de parir, corria para não ser lasca de pele escura para peles brancas de macho se esfregarem, corria para não ser penetrada de quatro e torturada por ciúme por outra escrava só que branca e bem vestida, corria para não ser diversão familiar enquanto era esfolada a chicotadas amarrada nua a um pedaço de pedra, corria por Adelina, para que as duas conhecessem outra vida. Simplesmente corria, sem saber para onde.

quarta-feira, 5 de março de 2014

Certa história de amor (um sonho, quiçá)

Parte de um conjunto de três contos que ganhou o segundo prêmio no Concurso Literário Bartolomeu Correia de Melo, organizado pela Cooperativa Cultural Universitária do Rio Grande do Norte.

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Una mujer se ha perdido
conocer el delirio y el polvo,
se ha perdido esta bella locura,
su breve cintura debajo de mí.
Se ha perdido mi forma de amar,
se ha perdido mi huella en su mar.
   
Silvio Rodríguez


O lembro como se fosse ontem, sua voz que parecia nascer-lhe do olhar, seus olhos tão obscenamente intensos, seu cabelo que modulava a forma do vento.

No dia em que me suicidei, Havana resplandecia envolta no manto alaranjado do pôr do sol. A ressaca jogava notas melancólicas nas rochas tristes do Malecón e raros carros rasgavam a cortina de resignada apatia que envolvia o crepúsculo da cidade.

Me joguei no mar pensando em quando voltara a encontrar-te, poucas horas antes, numa tarde de inverno, em uma Madri acariciada por uma chuva sutil cujas gotas diminutas tingiam de cinza a vitrine daquele bar em Atocha onde tinha me refugiado.

Na hora de me jogar ao Atlântico me ocorreram o estrondo infernal das bombas, os edifícios de Madri destroçados, as crianças com os ouvidos tampados nos refúgios, as lágrimas das mães que encontravam seus filhos mortos debaixo dos escombros e aquele cinza escuro e denso que tinha engolido a cidade e nossos corpos.

Lembra da nossa touca, aquela patética espelunca perto da Glorieta de Embajadores onde vendias teu corpo? Quem diria que aquele lugar onde nos amamos pela primeira vez, eu miliciano estrangeiro ferido numa guerra que não era a minha, mas me pertencia, tu puta enamorada – assim, pelo menos, me fizestes acreditar – quase cinquenta anos depois seria pela segunda vez o berço do meu primeiro amor?

Nos reconhecemos logo, apesar de que tínhamos mudado muito. Permanecemos calados muito tempo, não sei quanto, teu olhar ausente, vagamente doce mergulhado numa xícara de café vazia, o meu perdido atrás de gotas fugidias que se perseguiam, fundiam e esvaeciam em efêmeras brincadeiras na vitrine do bar. Passamos minutos, minutos eternos que pareceram dias, sem trocar uma palavra. Te observava de soslaio, discretamente, tentando decifrar os leves movimentos dos teus dedos.

Quero te contar uma história, dissestes de repente, e então levantei o olhar e te fitei, ou talvez fitasse tua voz que media o ritmo do tempo naquele bar envolto num cinza escuro que lembrava a época escura em que nos tínhamos conhecido. Vivia um jovem numa terra distante, um jovem sem casa e sem nome, sem passado e sem futuro, um jovem que cruzava as ruas de uma cidade imensa, anônima quanto ele, batendo carteiras nas esquinas, fazendo malabares nos sinais, cheirando cola quando a fome apertava. Um dia, uma moça o viu pedindo esmolas num sinal e decidiu levá-lo para a sua casa, lhe deu comida e preparou uma cama onde pudesse descansar. Seu olhar enigmático, cativante, penetrou nas entranhas no rapaz, desnudando-as. Se apaixonaram, mas não podiam se amar, pois ela era filha de um deus, um deus poderoso, e o sangue divino não pode fundir-se com o dos mortais. O amor que não podia tornar-se carne, pele, arrepios e umidade jogou os dois no desespero. A moça, não aguentando tanto sofrimento, selou um pacto com o pai: tornou-se humana e pagou como preço a perda da imortalidade e do seu sexo. Agora era um homem, mas o rapaz não quis amar outro homem. Assim, também procurou os deuses e eles aceitaram transformá-lo em mulher. Os deuses, porém, exigiram-lhe em troca uma sina que aceitou carregar sem pestanejar, estava disposto a tudo para viver seu amor, mas cuja natureza não quiseram lhe antecipar. A moça, agora um homem, tinha fugido para terras longínquas pela dor de não ser amada. O moço, mulher, foi buscá-la naquelas terras, mas não a encontrou, e lá teve que pagar o pedágio que os deuses lhe predisseram.

Não importa se então não te encontrei, o que importa é que agora estás aqui, que possamos voltar a nos amar como cinquenta anos atrás, agora como então sou jovem e nunca possui uma mulher, não me olhe por favor, não tão intensamente, teu olhar me cega como aquela vez na avenida do Parco delle Cascine em Florença quando eu era mulher e puta escrava e você homem e me iluminou com os faróis do carro, teu olhar cega mais que aqueles faróis no meio da madrugada, será que vai me amar assim como me amou na guerra?, afinal você também era um puta, não sei, agora o único que quero é sentir teus lábios umedecendo-me, esfregar minha pele eriçada em teu corpo nu, voltar a saborear o aroma de teu púbis que lembra as ondas do Malecón estraçalhando-se nas rochas, teus mamilos que têm o sabor da terra, aquela terra que quando a pisava me parecia demasiado dura.

Percorrermos o Paseo del Prado imersos nas recordações de umas vidas que, embora não foram as nossas, nos tinham parecidos tais. Em Cibeles saquei a coragem para te dizer o quanto tinha te amado, ou pelo menos tinha acreditado amar-te debaixo das bombas. Talvez fosse o medo daqueles dias o que se apoderou de mim enquanto passeávamos por Recoletos, mas na Plaza de Colón resolvi finalmente te beijar. Era a primeira vez que beijava uma mulher, a segunda primeira vez da minha vida, e enquanto minha língua percorria as dobras remotas da tua língua, enquanto se impregnava das texturas e os sabores mais recônditos da tua boca, enquanto explorava a região entre teus lábios e tuas gengivas e meus lábios absorviam avidamente tua umidade, senti aquela mesma sensação de jangada arrastada pelas ondas que me invadiu no dia em que, com a mesma idade de então, te beijei num refúgio enquanto os aviões fascistas destroçavam Madri.

Lembra da patética espelunca perto da Glorieta de Embajadores onde eu vivia (quem sabe a mesma onde você tinha vivido cinquenta anos antes?), suas paredes descascadas a lembrar os prédios da Havana Velha, as rachaduras do teto de onde caiam gotas que pareciam roçar o silêncio, o frio que impregnava tudo e que acabou impregnando os nossos ossos? Não sei se foi lá onde nos amáramos pela primeira vez, o único que sei é que quando acordei você dormia no meu peito; porém, já não era suave e evanescente como a garoa daquela tarde de inverno em Madri, mas marmórea como a mulher cuja história tinha me contado horas antes, e o calor úmido do trópico esmagava o quarto e os nossos corpos.

Como foi, não lembro mais como descobri que o que você buscava não era o meu amor, mas cavalgar a ilusão de uma vida melhor, talvez seja esse o sentido do verbo jinetear que vocês usam tanto, devia tê-lo entendido desde o início, mas o que importa?, o que importa é que não sei se alguma vez me amastes... foi por isso que me matei.

Não me pergunte como posso estar aqui agora, sentando contigo na grama do Retiro, lembrando meu suicídio: não sei responder. Também não sei como pode ter ocorrido tudo em um dia.


Talvez seja verdade, talvez um devaneio, não sei, não quero saber. O que importa é que pelo menos uma vez na vida acreditei que você me amou, e se foi um sonho qual a diferença? Você mesma talvez seja um sonho... e quiçá eu também.

segunda-feira, 3 de março de 2014

Carnaval

Foto: Canindê Soares

Há um momento do ano em que acordamos de rosto vazio, um vazio deslumbrante, grávido de contingência, abrimos o armário e escolhemos a máscara daquele dia, a fantasia daquele bloco, uma fantasia que talvez usemos nos dias seguintes, que talvez grude em nosso corpo até tornar-se nossa carne, ou que amanhã descartaremos para escolher uma nova, mais adequada ao novo bloco onde pularemos, ou que redesenharemos, remoldaremos ao sabor da euforia, da necessidade, do compasso da rua, da batida da multidão. Neste momento somos a rua, somos a dança, somos nossos próprios passos e a máscara fugaz que vestimos.

Todos os anos, este momento dura cerca de onze meses e três semanas. Todos os anos, este momento é rasgado por um lábil intervalo no qual, para aqueles que decidem continuar no baile ao invés de descansar, as máscaras e fantasias brotam não mais do fundo do armário, mas de uma região indistinta que flutua entre suas entranhas e o suor da massa dançante. Neste intervalo, às vezes, o vazio contingente consegue até soltar feixes de uma estanha felicidade.

sábado, 1 de março de 2014

No vórtice da multidão


No vórtice da multidão, nos embriagamos de uma excitante miragem: cavalgamos a ilusão de arrebentar as correntes do cotidiano, de explodir a jaula das rotinas, dos hábitos e convenções... Copulamos com o mito da liberdade e a liberdade, enquanto a penetramos embevecidos de euforia, vai deslizando suas garras por nossas costas, dilacerando silenciosamente nossa carne. Bêbados de cerveja e devaneios, alardeamos aos gritos nossa alforria enquanto cada uma de nossas amarras, rastejando sem fazer barulho, nos aperta ainda mais as entranhas. Três sendas se bifurcam à nossa frente. Na primeira somos engolidos pelo excitante turbilhão dessa quimera; atordoados, sucumbimos felizes à ditadura do que nos fizeram crer ser o que escorre em nossas veias. Na segunda simplesmente seguimos em frente; deixamos a correnteza moldar o ritmo e o rumo de nosso andar, suspendemos o crer; somos puro agir, agir sem motivo e sem meta, agir multidão. Ao enveredarmos pela terceira senda cruzamos olhares e, às vezes, reconhecemos o outro e suas amarras. Ao enxergar o delírio do outro, sentimos de repente o aperto silencioso de nossas próprias correntes.