terça-feira, 25 de outubro de 2011

Na natureza selvagem (Parte 1)

Me perguntaram porquê decidi estrear meu projeto cultural Café com Cinema, que promove momentos de encontro e de discussão livre a partir de obras cinematográficas exibidas antes de cada diálogo, com a obra Na natureza selvagem (Into the wild), dirigida por Sean Penn e baseada no livro homônimo do jornalista e alpinista Jon Krakauer, que reconstrói a jornada pelo Oeste norte-americano e o Alasca do jovem idealista Chris McCandless. O motivo é simples: em meu diálogo com aquele filme e aquele livro senti emergir com força inusitada emoções que vivenciei em primeira pessoa, insights que deixaram marcas indeléveis em minha memória e maneira de ser, experiências que contribuíram de maneira decisiva para dar forma às minhas obsessões cognitivas e existenciais. Quero narrar duas delas e, neste texto, me limitarei á primeira.

Aconteceu há uns cinco anos e, como todas as vivências mais intensas, inesperadamente, num dia gélido de começo de outono na extremidade austral do planeta, a ilha de Terra do Fogo. Poucos dias antes, tinha entrado nos meus 30 anos e decidido saudar esta nova fase da minha vida da melhor forma que conheço: ampliando meus horizontes cognitivos e emocionais através do contato com outras paisagens, outras gentes, outras maneiras de ver e estar no mundo. Naquela época morava em Buenos Aires, onde tinha terminado há pouco um período de intercâmbio profissional, e antes de voltar para casa tinha resolvido dar uma volta pelos que alguns gostam de chamar “os últimos confins da Terra”.

Estava atravessando a pe o Parque Nacional Tierra del Fuego, do lado argentino da ilha mais ao Sul do planeta, respirando a plenos pulmões o ar límpido daquela manhã, fascinado pela imponente floresta de lengas e guindos (árvores características do ecossistema fueguino) mergulhados num emaranhado sub-bosque de arbustos espinhosos, e devido ao meu passo deliberadamente lento e pausado os demais caminhantes com quem me encontrava já estavam fora do alcance da minha vista. O dia tinha amanhecido sereno, mas no meio da manhã o céu escureceu repentinamente e logo depois começou a nevar. Em poucos minutos, o caminho na minha frente e o bosque inteiro tinham se tornado um óleo sobre tela com infinitas variações e matizes de branco e de cinza. Avançava com dificuldade, afundando meus pés numa camada de neve cada vez mais espessa e na lama em que a terra debaixo dela tinha se transformado. O vento jogava rajadas de neve na minha cara cortando-a de frio, molhando e embaçando meus óculos e impedindo-me enxergar nitidamente o caminho. O pânico se apoderou inteiramente de mim, meus músculos enrijeceram-se, sentia o estômago arder-me pelo medo, acreditava que iria vomitar meu coração de tão violentamente o sentia pular em minha garganta. Me senti só, isolado de tudo, em meio a uma natureza hostil e indiferente, fria como aquela manhã que em poucos minutos tinha me jogado nas garras dos meus piores fantasmas.

Respirei fundo diversas vezes, procurei me acalmar racionalmente pensando que só precisava continuar pelo caminho que estava percorrendo, que apesar da neve impedir enxergar muito longe havia apenas que seguir pela pista já aberta no meio do bosque e que em algum momento, mais cedo ou mais tarde, iria desembocar na estrada que me levaria até a saída do parque. Segui em frente com estes pensamentos tranqüilizadores na mente, mas com o corpo inteiramente atravessado pelo medo, que não conseguia dominar, de não ter forças suficientes para chegar até o fim, de morrer de fome e de frio antes de atingir a meta. Podia perceber que levava tatuado em cada um dos meus neurônios, em cada célula do meu corpo o contexto urbano que tinha contribuído para forjar minha maneira de dar sentido à experiência, minha sensibilidade sensorial e minha visão de mundo.

Meus ouvidos, por exemplo, só conseguiam perceber o ruído do vento; se algum pássaro cantasse, se o sub-bosque produzisse algum som que sugerisse a movimentação de algum animal nos arredores, se um galho se quebrasse eu não perceberia, pois minha sensibilidade auditiva direcionava a atenção a um único aspecto daquele contexto, o que mais me inquietava naquele momento e também o mais fácil de ser percebido. Minha visão, já embaçada devido à sua dependência dos óculos, só se dirigia ao que vinha pela frente e ao que estava imediatamente diante dos meus pés. Não saberia dizer por quantas espécies de árvores passei ao longo da minha caminhada, não estava prestando atenção às diferenças entre elas, às suas características, nem às das outras espécies vegetais com as quais me deparei.

Percebia-me separado da natureza, como um objeto estranho projetado de repente em um cenário hostil, apesar de que minhas representações sobre a natureza e o homem estavam fortemente influenciadas por leituras de obras da ecologia profunda e de ensaios inspirados na visão da Terra como um sistema vivo. Aquela circunstância fez emergir com força dilacerante uma aparente contradição - que só é tal para um pensamento rigidamente fechado em uma lógica identitária, pois no real os apostos não se excluem, mas tendem a conviver e complementar-se na configuração dos fenômenos – entre minha percepção do mundo e algumas das minhas representações sobre a realidade.

Não conseguia, naquela situação, experienciar-me como um “fio da teia da vida”: minha percepção do ambiente e de mim mesmo estava parasitada por medos (o de não conseguir sair vivo daquele parque, acima de todos); anseios (entre eles, o de sair vivo para poder construir uma narrativa sobre o acontecido que fortalecesse minha autoestima, minhas convicções e a admiração dos outros por mim); obsessões (entre outras, a de poder contar futuramente que tinha vivenciado um mergulho na natureza); emoções (a mais intensa de todas, a saudade de algumas pessoas e do ambiente urbano), e por lógicas e conceitos não conscientes (minhas ideias de natureza e sociedade, entre outros), mas tatuados em meu aparelho cognitivo pelas relações urbanas das quais tinha participado durante a maior parte da minha vida. Esses elementos, entre os muitos que poderia ter mencionado (e uma miríade de outros dos quais, talvez, jamais tomarei consciência), condicionaram minhas estratégias de atenção e o tipo de hibridação que construí com aquele ambiente.

Continuando a caminhada, de algumas brechas entre as árvores vislumbrei o mar e umas ilhotas a distância. Percebi que estava costeando uma praia e, pouco depois, me encontrei nela. Na minha frente desenhava-se um espetáculo que jamais tinha presenciado: uma esplêndida enseada rochosa cravada de arbustos, completamente coberta de neve, acariciada por um mar límpido, sereno, apesar da tormenta que o céu estava desabando na terra, de onde podiam-se avistar algumas ilhas do Canal de Beagle igualmente pintadas de branco. De repente, tão improvisamente como tinha começado, parou de nevar. Estava encharcado, coberto de lama, cansado e ainda com alguns quilômetros de caminho pela frente, mas naquele momento, diante daquela vista tão emocionante e inusitada para mim, onde pela primeira vez via fundir-se neve e mar, nada disso me importava. Me sentei numa rocha, o coração calmo, o corpo leve, respirei serenamente o ar limpo daquela enseada, me deixei acariciar pelo vento que não mais me parecia rachante e, por não sei quanto tempo, com a cabeça esvaziada de pensamentos, apenas olhei e escutei aquilo que estava na minha frente. Havia apenas eu, o mar, as rochas, os arbustos, o vento, a neve e o canto distante de alguns cormorões...

Naqueles instantes, deixei temporariamente de lado meus fantasmas, meus conceitos, meus ritmos, minha lógica, ou – sendo impossível abandoná-los, posto que estão complemente incrustados em meu cérebro e meu corpo, que em grande medida contribuíram a forjar, até o ponto que às vezes os percebo como tão “naturais” quanto o ar que respiro – pelo menos atenuei o mais possível a sua influência. Então, de repente, sem que pudesse perceber a passagem de um estado de percepção a outro, me senti muito mais do que um habitante da Terra... A senti pulsar em minhas veias, vibrar em minha pele, dançar em meu corpo; a senti impregnada em minhas células, tatuada em meu corpo, esculpida em minha mente. Me senti Terra que pensa, que sente, que ama, que chora, que ri, que edifica e destrói. Por alguns fugazes instantes deixei de me perceber como um hospede, um viajante, um corpo estranho projetado pelo acaso na superfície deste planeta... Naquele relâmpago epifânico, me experienciei como um filho da Terra que jamais cortou seu cordão umbilical; me senti uma célula, uma parcela indissociável de um gigantesco corpo vivo, um irmão das rochas, das árvores, das nuvens, dos rios, os lagos e os oceanos; me senti inseparável do vento, da chuva, das folhas, dos vulcões e das geleiras, dos cormorões e os leões marinhos, dos répteis e das baleias, das rãs e dos felinos, dos micróbios e dos gases... Naqueles instantes, que duraram só poucos minutos, tive um vislumbre simultaneamente corporal e psíquico, racional e emotivo duma experiência que alguns cientistas contemporâneos representam com a imagem de Géia, deusa grega que encarna a Mãe-Terra, e que povoa o universo mítico de muitas populações como arquétipo da Grande-Mãe, Deusa-Mãe ou Pacha Mama: a percepção do nosso planeta como um sistema vivo, uma entidade em permanente auto-recriação, de cujo processo nós humanos – como indivíduos e como espécie - somos ao mesmo tempo emergência e fio indissolúvel, em simbiose com todos os demais organismos (temporariamente) vivos e (provisoriamente) não-vivos.

Pude ver e sentir na pele, então, o quanto adotar outro olhar sobre o que me rodeia pode mudar a percepção que tenho de mim mesmo e das demais manifestações da matéria e da vida, permitir-me reescrever ou modificar minha narrativa sobre o mundo, ressignificar minhas experiências, enriquecer e ampliar meus horizontes cognitivos (pois vislumbrei outras possibilidades de conhecer e descrever fenômenos da natureza não-humana), emocionais (pois senti expandir-se minha empatia para seres que antes esta não abraçava... e foi a partir de uma experiência emotiva, o deslumbramento que vivenciei diante daquela paisagem, que se desencadearam processos modificadores de minhas representações mentais e sensações corporais) e corporais (pois pude, embora só por alguns instantes, ampliar a percepção dos limites do meu corpo, abrangendo seres e fenômenos – água, sol etc. – que antes experienciava como drasticamente separados dele).

Alguns minutos depois daquilo, recuperadas minhas energias, retomei o caminho até a saída do parque, que ainda demorou várias horas. Demoraria muito tempo para voltar a ter vislumbres de consciência semelhantes ao que experienciei naquela manhã de outono num lugar remoto do último confim da Terra.

Nenhum comentário:

Postar um comentário