segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Quebra de paradigma?

O Brasil é um dos países que mais reduziram a pobreza e que mais cresceram nos últimos anos, segundo a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Com a crise econômica que assola a Europa, o país se tornou a sexta economia do planeta em termos de riqueza global produzida e está participando do plano de resgate da zona do euro através dos seus empréstimos ao Fundo Monetário Internacional. Alguns, embriagados de ufanismo, gostam de afirmar que houve uma “quebra de paradigma”, pois pela primeira vez na história do país o crescimento não veio acompanhado pelo aumento da desigualdade, mas por uma maior redistribuição da riqueza.

Temo que decepcionarei os entusiastas do “novo” Brasil, mas não vejo quebra de paradigma nenhuma no modelo de desenvolvimento que o país adotou nos últimos nove anos. Mudar de paradigma quer dizer modificar os conceitos-mestres e a lógica em base às quais opera nosso pensamento, afetando nossas ações. E o mito que subjaz às políticas implementadas nos últimos anos é exatamente o mesmo que alimentou a história do Brasil desde o início da República, passando pelo Estado Novo, as utopias futuristas de Juscelino Kubichek, a ditadura militar e a onda neoliberal da década de 1990... o mito que está tatuado no lábaro estrelado que a mãe gentil dos filhos deste solo ostenta em seu hino nacional: o do “progresso”. Sua concepção não mudou muito desde o surgimento dos ideais positivistas de onde desabrochou o lema esculpido em nossa bandeira; o que mudou ao longo das décadas foi apenas a configuração, o arranjo sócio-econômico-político específico que o mito assumiu em cada fase da história do país. Mas o conceito permaneceu inalterado: produzir cada vez mais riqueza, aumentar cada vez mais o consumo, incrementar cada vez mais o poder aquisitivo, possuir cada vez mais bens...

Comparado com as décadas anteriores, a configuração atual desse crescimento é muito mais ética, pois contempla uma ampla fatia de população que durante séculos esteve deliberadamente excluída dele e pressupõe a sua participação ativa no “desenvolvimento”. Sobre isso concordo em gênero, número e grau. Foi por isso que, apesar de minha escassa simpatiza com a ideia de desenvolvimento, apoiei criticamente os governos de Lula e apoio a atual administração de Dilma. Mas não venham me dizer que houve quebra de paradigma, pois estamos longe anos luz de uma mudança real, estrutural dos conceitos e da lógica em que se sustenta nossa sociedade.

Os pobres estão conquistando direitos, estão conquistando espaços de participação, dizem. Mas, pergunto, poder comprar à prestação uma máquina de lavar louça, um som de última geração ou um iphone e continuar a morar em uma rua sem saneamento e sem coleta de lixo, em um bairro em cujo posto de saúde faltam algodão e seringas para aplicar injeções, em cuja escola não há papel higiênico nos banheiros e a principal preocupação dos professores é como chegar até o fim dos mês com um salário de fome é um avanço substancial em termos de direitos e de participação democrática? E se ao invés de cada vez mais carros circulando nas ruas houvesse em todas as cidades um transporte público decente, concebido pensando nas pessoas, não-poluente e mais pistas cicláveis? Se ao invés de cada vez mais áreas desmatadas para a criação de gado com o propósito de alimentar um crescente mercado interno de consumidores, houvesse escolas rurais com ensino de excelência estimulando uma relação não predadora com o ambiente desde a primeira infância? Se ao invés de possuir três ou quatro celulares, os jovens das periferias pudessem estudar em escolas públicas com uma boa infraestrutura, professores motivados e qualificados e processos pedagógicos que incentivassem seu espírito crítico e cultivassem sua sensibilidade, curiosidade e criatividade? Se ao invés de construir mais viadutos, se plantassem mais árvores em nossas cidades? Se ao invés de cada vez mais pobres terem acesso a planos de saúde, aumentando os lucros de um cartel criminoso, os deputados, os senadores, os ministros, os executivos de grandes empresas começassem a usar o SUS? Se ao invés de construir hidroelétricas na Amazônia, conhecêssemos melhor as culturas e os saberes indígenas, dialogássemos mais com eles e promovêssemos outras maneiras de vivermos e de nos relacionarmos com o ambiente? Se ao invés de emprestar milhões de euros a países ricos para que resolvam os problemas de suas dívidas se usasse o mesmo dinheiro para sanear bairros, fazer calçadas, construir hospitais, fazer funcionar postos de saúde, promover uma educação pública de qualidade, melhorar as condições das rodovias de um país de dimensões continentais?

Mudar de paradigma quer dizer que ao invés de pensar em como aumentar o Produto Interior Bruto, os lucros das empresas e os dos bancos e, depois, ver quanto sobra para a saúde, a educação, o saneamento e a cultura, se pense no que é preciso para garantir uma saúde e uma educação de qualidade para todos, saneamento universal, promoção da cultura e acesso a ela e se planejem as políticas econômicas com base nisso. Mudar de paradigma quer dizer ter a coragem de abandonar mitos e adotar novas ideias, fundamentar nosso pensamento e nossa ação em novos conceitos. Quer dizer, por exemplo, ter a honestidade e a coragem de reconhecer que não é preciso aumentar a riqueza e o consumo, nem fazer respingar mais essa riqueza para os pobres enquanto continua a crescer, mas transformar a existente – que já é mais do que suficiente - em qualidade de vida, em educação, em cultura, em oportunidades para todos. Significa reconhecer que uma minoria tem que decrescer, reduzir seus ritmos de consumo e de vida, possuir menos, enquanto a imensa maioria tem que melhorar a qualidade de sua vida não aumentando seus bens privados, mas tendo o mesmo acesso da minoria aos bens universais. Significa assumir a sobriedade, a simplicidade voluntária como valores-mestres de um novo modo de viver e de ver o mundo.

sábado, 29 de outubro de 2011

A ágora da blogosfera mundial

468 participantes de 23 países e 17 Estados brasileiros; dois dias de intensas discussões, ricos debates, instigantes reflexões, trocas de experiências, práticas e visões: é o balanço do 1º Encontro Mundial de Blogueiros (#BlogMundoFoz) que aconteceu em Foz do Iguaçu (Paraná) de quinta-feira, 27, a sábado, 29 de outubro.

A pegada mais forte que esta animada, diversificada e criativa ágora ántropo-digital me deixou foi a sensação de que o universo das mídias sociais - que se reconfigura permanentemente em ritmos vertiginosos, é poliédrico, pluridirecional, multifacetado e marcado pela imprevisibilidade – está muito longe de ter manifestado a maioria de suas (talvez imponderáveis) potencialidades. Mas, sobretudo, o encontro fortaleceu minha íntima convicção de que a interação/hibridação entre sujeitos humanos e tecnologias digitais de comunicação, agentes mestiços em incessante reconfiguração mútua, pode – ao contrário do que alguns pensam – ser um fator promotor de mudanças em direção a uma sociedade – e incluo nesta expressão não apenas os humanos, mas todos os não-humanos, vivos e não-vivos que participam de sua redefinição permanente – mais aberta, mas participativa, mais horizontal, mais diversa, mais polifônica, quiçá mais feliz.

Pensadores como Ignacio Ramonet e Pascual Serrano mostraram que, como tudo o que é do domínio da matéria e da vida, no ciberespaço tendências opostas convivem, se entrelaçam, se alimentam mutuamente e, ao invés de se excluírem, se complementam. Quanto mais nos comunicamos; quanto mais compartilhamos ideias, emoções, experiências; quanto mais nos mobilizamos e articulamos em rede; quanto mais nos conectamos uns aos outros mais enriquecemos grandes conglomerados empresariais cujos lucros se alimentam de nossa vontade de estar juntos e de participar da vida comum. Quanto mais democratizamos o acesso à informação quebrando o papel tradicional de emissor e receptor, mais somos vigiados, controlados, censurados, invadidos em nossa privacidade por empresas, profissionais de marketing e governos. Quanto mais nos aproximamos, mais nos afastamos. Quanto mais informação independente fazemos circular, mais aumentamos o ruído informativo. Quantas mais pessoas saem às ruas de forma espontânea, horizontal e auto-organizada criando novas sociabilidades, mais vazia – às vezes – é a cabeça dessas pessoas de conteúdos significativos com um real potencial transformador. Quantas mais pessoas se reúnem para partilhar suas experiências em mídias sociais, mais aumenta a censura de empresas que lucram com tais partilhas, como aconteceu no próprio encontro de Foz do Iguaçu cuja hashtag #BlogMundoFoz foi deliberadamente excluída dos trendtopics brasileiros (a lista dos assuntos mais comentados) pelo Twitter.

Mas, como seres complexos e contraditórios que somos, não devemos nos admirar nem muito menos nos assustar com isso: o real não é coerente, homogêneo e unívoco; não o é o mundo da matéria; não o é o mundo vivo; não o é o domínio do humano. Porquê, então, o seriam o universo das mídias digitais e as hibridações que tecemos com elas? Assumirmos a contradição, a multiversidade das tecnologias digitais de comunicação é o primeiro passo rumo a formas de interação com elas - e de interação entre nós mediada por elas – capazes de traçar caminhos de emancipação geo-bio-antropológica.

Experiências como as da Primavera Árabe, dos movimentos de #indignados que estão promovendo nos cinco continentes acampamentos auto-organizados, articulados pelas redes sociais e com o único propósito de dizer aos poderes constituídos e ao resto da sociedade que algo está errado no modelo de desenvolvimento que adotamos, experiências que foram quase todas representadas e compartilhadas no #BlogMundoFoz, nos mostram que é possível construir pelas, nas e com as mídias digitais práticas sociais, relações interpessoais e – acrescento eu – também interações homem-ambiente baseadas em pressupostos emancipatórios: reciprocidade; escuta sensível do outro; partilha; generosidade; desinteresse; horizontalidade; participação direta; diálogo entre saberes.

Debates como o sobre as legislações sobre comunicação e sobre mídias digitais em diferentes países fizeram emergir com clareza a consciência da blogosfera de que os Estados e as sociedades das quais são parte, de mãos dadas, precisam promover e implementar marcos regulatórios abertos, plurais e flexíveis, mas pautados em princípios claros como transparência, democracia participativa e ausência de censura, que favoreçam o despertar e a expressão das múltiplas potencialidades das mídias sociais.

O encontro, que se concluiu com a aprovação da Carta de Foz do Iguaçu que sintetiza os princípios e reivindicações que pautaram as discussões, foi para mim, acima de tudo, um sinal. O sinal de que milhões de pessoas, em cada rincão da nossa grande casa comum, hibridando-se com tecnologias digitais de comunicação estão construindo novas formas de comunicar, de ser, de participar da vida coletiva, de viver. Essas pessoas estão se unindo, trocando experiências, se articulando, criando novos espaços digitais e sociais, prospectando novas possibilidades de sociedade, de homem e de natureza. Até onde este movimento irá, não dá para saber. O que sei é que está em caminho e que será difícil detê-lo.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Na natureza selvagem (Parte 1)

Me perguntaram porquê decidi estrear meu projeto cultural Café com Cinema, que promove momentos de encontro e de discussão livre a partir de obras cinematográficas exibidas antes de cada diálogo, com a obra Na natureza selvagem (Into the wild), dirigida por Sean Penn e baseada no livro homônimo do jornalista e alpinista Jon Krakauer, que reconstrói a jornada pelo Oeste norte-americano e o Alasca do jovem idealista Chris McCandless. O motivo é simples: em meu diálogo com aquele filme e aquele livro senti emergir com força inusitada emoções que vivenciei em primeira pessoa, insights que deixaram marcas indeléveis em minha memória e maneira de ser, experiências que contribuíram de maneira decisiva para dar forma às minhas obsessões cognitivas e existenciais. Quero narrar duas delas e, neste texto, me limitarei á primeira.

Aconteceu há uns cinco anos e, como todas as vivências mais intensas, inesperadamente, num dia gélido de começo de outono na extremidade austral do planeta, a ilha de Terra do Fogo. Poucos dias antes, tinha entrado nos meus 30 anos e decidido saudar esta nova fase da minha vida da melhor forma que conheço: ampliando meus horizontes cognitivos e emocionais através do contato com outras paisagens, outras gentes, outras maneiras de ver e estar no mundo. Naquela época morava em Buenos Aires, onde tinha terminado há pouco um período de intercâmbio profissional, e antes de voltar para casa tinha resolvido dar uma volta pelos que alguns gostam de chamar “os últimos confins da Terra”.

Estava atravessando a pe o Parque Nacional Tierra del Fuego, do lado argentino da ilha mais ao Sul do planeta, respirando a plenos pulmões o ar límpido daquela manhã, fascinado pela imponente floresta de lengas e guindos (árvores características do ecossistema fueguino) mergulhados num emaranhado sub-bosque de arbustos espinhosos, e devido ao meu passo deliberadamente lento e pausado os demais caminhantes com quem me encontrava já estavam fora do alcance da minha vista. O dia tinha amanhecido sereno, mas no meio da manhã o céu escureceu repentinamente e logo depois começou a nevar. Em poucos minutos, o caminho na minha frente e o bosque inteiro tinham se tornado um óleo sobre tela com infinitas variações e matizes de branco e de cinza. Avançava com dificuldade, afundando meus pés numa camada de neve cada vez mais espessa e na lama em que a terra debaixo dela tinha se transformado. O vento jogava rajadas de neve na minha cara cortando-a de frio, molhando e embaçando meus óculos e impedindo-me enxergar nitidamente o caminho. O pânico se apoderou inteiramente de mim, meus músculos enrijeceram-se, sentia o estômago arder-me pelo medo, acreditava que iria vomitar meu coração de tão violentamente o sentia pular em minha garganta. Me senti só, isolado de tudo, em meio a uma natureza hostil e indiferente, fria como aquela manhã que em poucos minutos tinha me jogado nas garras dos meus piores fantasmas.

Respirei fundo diversas vezes, procurei me acalmar racionalmente pensando que só precisava continuar pelo caminho que estava percorrendo, que apesar da neve impedir enxergar muito longe havia apenas que seguir pela pista já aberta no meio do bosque e que em algum momento, mais cedo ou mais tarde, iria desembocar na estrada que me levaria até a saída do parque. Segui em frente com estes pensamentos tranqüilizadores na mente, mas com o corpo inteiramente atravessado pelo medo, que não conseguia dominar, de não ter forças suficientes para chegar até o fim, de morrer de fome e de frio antes de atingir a meta. Podia perceber que levava tatuado em cada um dos meus neurônios, em cada célula do meu corpo o contexto urbano que tinha contribuído para forjar minha maneira de dar sentido à experiência, minha sensibilidade sensorial e minha visão de mundo.

Meus ouvidos, por exemplo, só conseguiam perceber o ruído do vento; se algum pássaro cantasse, se o sub-bosque produzisse algum som que sugerisse a movimentação de algum animal nos arredores, se um galho se quebrasse eu não perceberia, pois minha sensibilidade auditiva direcionava a atenção a um único aspecto daquele contexto, o que mais me inquietava naquele momento e também o mais fácil de ser percebido. Minha visão, já embaçada devido à sua dependência dos óculos, só se dirigia ao que vinha pela frente e ao que estava imediatamente diante dos meus pés. Não saberia dizer por quantas espécies de árvores passei ao longo da minha caminhada, não estava prestando atenção às diferenças entre elas, às suas características, nem às das outras espécies vegetais com as quais me deparei.

Percebia-me separado da natureza, como um objeto estranho projetado de repente em um cenário hostil, apesar de que minhas representações sobre a natureza e o homem estavam fortemente influenciadas por leituras de obras da ecologia profunda e de ensaios inspirados na visão da Terra como um sistema vivo. Aquela circunstância fez emergir com força dilacerante uma aparente contradição - que só é tal para um pensamento rigidamente fechado em uma lógica identitária, pois no real os apostos não se excluem, mas tendem a conviver e complementar-se na configuração dos fenômenos – entre minha percepção do mundo e algumas das minhas representações sobre a realidade.

Não conseguia, naquela situação, experienciar-me como um “fio da teia da vida”: minha percepção do ambiente e de mim mesmo estava parasitada por medos (o de não conseguir sair vivo daquele parque, acima de todos); anseios (entre eles, o de sair vivo para poder construir uma narrativa sobre o acontecido que fortalecesse minha autoestima, minhas convicções e a admiração dos outros por mim); obsessões (entre outras, a de poder contar futuramente que tinha vivenciado um mergulho na natureza); emoções (a mais intensa de todas, a saudade de algumas pessoas e do ambiente urbano), e por lógicas e conceitos não conscientes (minhas ideias de natureza e sociedade, entre outros), mas tatuados em meu aparelho cognitivo pelas relações urbanas das quais tinha participado durante a maior parte da minha vida. Esses elementos, entre os muitos que poderia ter mencionado (e uma miríade de outros dos quais, talvez, jamais tomarei consciência), condicionaram minhas estratégias de atenção e o tipo de hibridação que construí com aquele ambiente.

Continuando a caminhada, de algumas brechas entre as árvores vislumbrei o mar e umas ilhotas a distância. Percebi que estava costeando uma praia e, pouco depois, me encontrei nela. Na minha frente desenhava-se um espetáculo que jamais tinha presenciado: uma esplêndida enseada rochosa cravada de arbustos, completamente coberta de neve, acariciada por um mar límpido, sereno, apesar da tormenta que o céu estava desabando na terra, de onde podiam-se avistar algumas ilhas do Canal de Beagle igualmente pintadas de branco. De repente, tão improvisamente como tinha começado, parou de nevar. Estava encharcado, coberto de lama, cansado e ainda com alguns quilômetros de caminho pela frente, mas naquele momento, diante daquela vista tão emocionante e inusitada para mim, onde pela primeira vez via fundir-se neve e mar, nada disso me importava. Me sentei numa rocha, o coração calmo, o corpo leve, respirei serenamente o ar limpo daquela enseada, me deixei acariciar pelo vento que não mais me parecia rachante e, por não sei quanto tempo, com a cabeça esvaziada de pensamentos, apenas olhei e escutei aquilo que estava na minha frente. Havia apenas eu, o mar, as rochas, os arbustos, o vento, a neve e o canto distante de alguns cormorões...

Naqueles instantes, deixei temporariamente de lado meus fantasmas, meus conceitos, meus ritmos, minha lógica, ou – sendo impossível abandoná-los, posto que estão complemente incrustados em meu cérebro e meu corpo, que em grande medida contribuíram a forjar, até o ponto que às vezes os percebo como tão “naturais” quanto o ar que respiro – pelo menos atenuei o mais possível a sua influência. Então, de repente, sem que pudesse perceber a passagem de um estado de percepção a outro, me senti muito mais do que um habitante da Terra... A senti pulsar em minhas veias, vibrar em minha pele, dançar em meu corpo; a senti impregnada em minhas células, tatuada em meu corpo, esculpida em minha mente. Me senti Terra que pensa, que sente, que ama, que chora, que ri, que edifica e destrói. Por alguns fugazes instantes deixei de me perceber como um hospede, um viajante, um corpo estranho projetado pelo acaso na superfície deste planeta... Naquele relâmpago epifânico, me experienciei como um filho da Terra que jamais cortou seu cordão umbilical; me senti uma célula, uma parcela indissociável de um gigantesco corpo vivo, um irmão das rochas, das árvores, das nuvens, dos rios, os lagos e os oceanos; me senti inseparável do vento, da chuva, das folhas, dos vulcões e das geleiras, dos cormorões e os leões marinhos, dos répteis e das baleias, das rãs e dos felinos, dos micróbios e dos gases... Naqueles instantes, que duraram só poucos minutos, tive um vislumbre simultaneamente corporal e psíquico, racional e emotivo duma experiência que alguns cientistas contemporâneos representam com a imagem de Géia, deusa grega que encarna a Mãe-Terra, e que povoa o universo mítico de muitas populações como arquétipo da Grande-Mãe, Deusa-Mãe ou Pacha Mama: a percepção do nosso planeta como um sistema vivo, uma entidade em permanente auto-recriação, de cujo processo nós humanos – como indivíduos e como espécie - somos ao mesmo tempo emergência e fio indissolúvel, em simbiose com todos os demais organismos (temporariamente) vivos e (provisoriamente) não-vivos.

Pude ver e sentir na pele, então, o quanto adotar outro olhar sobre o que me rodeia pode mudar a percepção que tenho de mim mesmo e das demais manifestações da matéria e da vida, permitir-me reescrever ou modificar minha narrativa sobre o mundo, ressignificar minhas experiências, enriquecer e ampliar meus horizontes cognitivos (pois vislumbrei outras possibilidades de conhecer e descrever fenômenos da natureza não-humana), emocionais (pois senti expandir-se minha empatia para seres que antes esta não abraçava... e foi a partir de uma experiência emotiva, o deslumbramento que vivenciei diante daquela paisagem, que se desencadearam processos modificadores de minhas representações mentais e sensações corporais) e corporais (pois pude, embora só por alguns instantes, ampliar a percepção dos limites do meu corpo, abrangendo seres e fenômenos – água, sol etc. – que antes experienciava como drasticamente separados dele).

Alguns minutos depois daquilo, recuperadas minhas energias, retomei o caminho até a saída do parque, que ainda demorou várias horas. Demoraria muito tempo para voltar a ter vislumbres de consciência semelhantes ao que experienciei naquela manhã de outono num lugar remoto do último confim da Terra.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Literatura e cinema: escolas de vida

Tenho uma íntima convicção: a de que obras literárias, cinematográficas ou qualquer outra expressão artística nos revelam muito mais sobre o homem, a sociedade, a natureza, a vida do que complexos tratados científicos (sem que isso impeça que as ciências estejam tão impregnadas de subjetividade, intuição e criatividade quanto as artes). Como Edgar Morin em A cabeça bem feita, concebo literatura e cinema como “escolas de vida” (p. 48). Em primeiro lugar, porque estimulam um processo de identificação/projeção de nossas pulsões, nossos medos, nossas neuroses, nossos fantasmas, nossos desejos. Revela Morin na obra citada:Livros constituem ‘experiências de verdade’, quando nos desvendam e configuram uma verdade ignorada, escondida, profunda, informe, que trazemos em nós, o que nos proporciona o duplo encantamento da descoberta de nossa verdade na descoberta de uma verdade exterior a nós, que se acopla à nossa verdade, incorpora-se a ela e torna-se a nossa verdade. (p. 48).

Isso é possível porque, como o próprio Morin acrescenta, livros e filmes são “escolas da complexidade humana” (p. 49). Enquanto, na maioria dos casos, as obras de caráter científico – mesmo as mais abertas e polifônicas - necessitam separar para discernir, conceituar (o que é sempre um processo de redução do real), recortar, definir um foco, objetivar distinguindo o que é da ordem do sujeito do que é da ordem dos fenômenos observados (mesmo quando, e isso é cada vez mais freqüente nas ciências contemporâneas, reconheça a participação ativa do sujeito na construção do seu objeto e a impossibilidade de um conhecimento depurado de subjetividade). Dos romances, cartas, relatos autobiográficos, ensaios e filmes emergem imbricados, compenetrados, inextricavelmente entrelaçados os mais diversos aspectos da existência, as mais diversas dimensões do real, as mais diversas faces do sujeito. É na arte, como afirma ainda Morin, “que percebemos que Homo sapiens é, ao mesmo tempo, indissoluvelmente, Homo demens” (p. 49).

Medos, anseios, obsessões, impulsos, condicionamentos conscientes e inconscientes: a emaranhada teia de fatores subjetivos e objetivos (entendendo estes últimos como os determinados pelas redes de inter-retroações do sujeito com o mundo, concebendo o sujeito e tudo o mais como híbridos em permanente redefinição) contribui para configurar determinadas situações, relações, personalidades, estratégias cognitivas que aparecem em toda a sua complexidade nas obras artísticas, que não estão amarradas aos imperativos da conceituação.

No dia a dia, temos a insana tendência a operarmos o pensamento por redução, simplificação, univocidade. É mais prático e nos proporciona uma – mesmo que frágil - sensação de certeza., de segurança. Construímos nossa imagem dos outros a partir de uns poucos elementos, os que mais se adéquam a nossos sistemas prévios de significações ou que mais ganham saliência ao nosso olhar. Os organizamos em uma representação coerente e esta impregna nossa percepção, contribui para estruturar nossa experiência, configura os nossos julgamentos. Nos sentimos aliviados ao poder afirmar: fulana é uma prostituta, beltrano é um pai de família, sincrano é um traficante... Tudo tem seu lugar no mosaico que vamos compondo e que acaba se tornando a própria realidade que habitamos.

Mas eis que os romances e os filmes – pelo menos, os bons romances e os bons filmes – vêm ai e estilhaçam esse castelo de certezas. Nos sacodem, nos tiram o chão, abalam nossos fundamentos, nos instigam a repensar nossos pressupostos. Nos mostram que um torturador tem nossas mesmas obsessões, um assassino tem nossos mesmos medos, uma prostituta tem nossos mesmos sentimentos, um estelionatário tem nossos mesmos fantasmas, um oficial nazista capaz de matar milhares de pessoas numa câmara de gás é um pai carinhoso e um amante da boa música, um terrorista é afetuoso e desprendido, um traficante é capaz de solidariedade e altruísmo, um ladrão tem ética... Nos mostram que cada um de nós está parasitado pelos mais mesquinhos desejos e os mais elevados arrebatamentos, os mais violentos impulsos e a mais desinteressada generosidade. Nos revelam nossas múltiplas faces, nos colocam diante de nossa natureza intrinsecamente, ineludivelmente contraditória... porque no que é inacabado, no que é aberto, no que é polifônico, no que é mestiço os opostos não se excluem, mas convivem e se complementam.

Por isso, quando quero conhecer-me mais a fundo ou compreender melhor a realidade, não procuro ensaios científicos nem os meios de comunicação: leio um bom romance ou assisto um bom filme.