segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Quebra de paradigma?

O Brasil é um dos países que mais reduziram a pobreza e que mais cresceram nos últimos anos, segundo a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Com a crise econômica que assola a Europa, o país se tornou a sexta economia do planeta em termos de riqueza global produzida e está participando do plano de resgate da zona do euro através dos seus empréstimos ao Fundo Monetário Internacional. Alguns, embriagados de ufanismo, gostam de afirmar que houve uma “quebra de paradigma”, pois pela primeira vez na história do país o crescimento não veio acompanhado pelo aumento da desigualdade, mas por uma maior redistribuição da riqueza.

Temo que decepcionarei os entusiastas do “novo” Brasil, mas não vejo quebra de paradigma nenhuma no modelo de desenvolvimento que o país adotou nos últimos nove anos. Mudar de paradigma quer dizer modificar os conceitos-mestres e a lógica em base às quais opera nosso pensamento, afetando nossas ações. E o mito que subjaz às políticas implementadas nos últimos anos é exatamente o mesmo que alimentou a história do Brasil desde o início da República, passando pelo Estado Novo, as utopias futuristas de Juscelino Kubichek, a ditadura militar e a onda neoliberal da década de 1990... o mito que está tatuado no lábaro estrelado que a mãe gentil dos filhos deste solo ostenta em seu hino nacional: o do “progresso”. Sua concepção não mudou muito desde o surgimento dos ideais positivistas de onde desabrochou o lema esculpido em nossa bandeira; o que mudou ao longo das décadas foi apenas a configuração, o arranjo sócio-econômico-político específico que o mito assumiu em cada fase da história do país. Mas o conceito permaneceu inalterado: produzir cada vez mais riqueza, aumentar cada vez mais o consumo, incrementar cada vez mais o poder aquisitivo, possuir cada vez mais bens...

Comparado com as décadas anteriores, a configuração atual desse crescimento é muito mais ética, pois contempla uma ampla fatia de população que durante séculos esteve deliberadamente excluída dele e pressupõe a sua participação ativa no “desenvolvimento”. Sobre isso concordo em gênero, número e grau. Foi por isso que, apesar de minha escassa simpatiza com a ideia de desenvolvimento, apoiei criticamente os governos de Lula e apoio a atual administração de Dilma. Mas não venham me dizer que houve quebra de paradigma, pois estamos longe anos luz de uma mudança real, estrutural dos conceitos e da lógica em que se sustenta nossa sociedade.

Os pobres estão conquistando direitos, estão conquistando espaços de participação, dizem. Mas, pergunto, poder comprar à prestação uma máquina de lavar louça, um som de última geração ou um iphone e continuar a morar em uma rua sem saneamento e sem coleta de lixo, em um bairro em cujo posto de saúde faltam algodão e seringas para aplicar injeções, em cuja escola não há papel higiênico nos banheiros e a principal preocupação dos professores é como chegar até o fim dos mês com um salário de fome é um avanço substancial em termos de direitos e de participação democrática? E se ao invés de cada vez mais carros circulando nas ruas houvesse em todas as cidades um transporte público decente, concebido pensando nas pessoas, não-poluente e mais pistas cicláveis? Se ao invés de cada vez mais áreas desmatadas para a criação de gado com o propósito de alimentar um crescente mercado interno de consumidores, houvesse escolas rurais com ensino de excelência estimulando uma relação não predadora com o ambiente desde a primeira infância? Se ao invés de possuir três ou quatro celulares, os jovens das periferias pudessem estudar em escolas públicas com uma boa infraestrutura, professores motivados e qualificados e processos pedagógicos que incentivassem seu espírito crítico e cultivassem sua sensibilidade, curiosidade e criatividade? Se ao invés de construir mais viadutos, se plantassem mais árvores em nossas cidades? Se ao invés de cada vez mais pobres terem acesso a planos de saúde, aumentando os lucros de um cartel criminoso, os deputados, os senadores, os ministros, os executivos de grandes empresas começassem a usar o SUS? Se ao invés de construir hidroelétricas na Amazônia, conhecêssemos melhor as culturas e os saberes indígenas, dialogássemos mais com eles e promovêssemos outras maneiras de vivermos e de nos relacionarmos com o ambiente? Se ao invés de emprestar milhões de euros a países ricos para que resolvam os problemas de suas dívidas se usasse o mesmo dinheiro para sanear bairros, fazer calçadas, construir hospitais, fazer funcionar postos de saúde, promover uma educação pública de qualidade, melhorar as condições das rodovias de um país de dimensões continentais?

Mudar de paradigma quer dizer que ao invés de pensar em como aumentar o Produto Interior Bruto, os lucros das empresas e os dos bancos e, depois, ver quanto sobra para a saúde, a educação, o saneamento e a cultura, se pense no que é preciso para garantir uma saúde e uma educação de qualidade para todos, saneamento universal, promoção da cultura e acesso a ela e se planejem as políticas econômicas com base nisso. Mudar de paradigma quer dizer ter a coragem de abandonar mitos e adotar novas ideias, fundamentar nosso pensamento e nossa ação em novos conceitos. Quer dizer, por exemplo, ter a honestidade e a coragem de reconhecer que não é preciso aumentar a riqueza e o consumo, nem fazer respingar mais essa riqueza para os pobres enquanto continua a crescer, mas transformar a existente – que já é mais do que suficiente - em qualidade de vida, em educação, em cultura, em oportunidades para todos. Significa reconhecer que uma minoria tem que decrescer, reduzir seus ritmos de consumo e de vida, possuir menos, enquanto a imensa maioria tem que melhorar a qualidade de sua vida não aumentando seus bens privados, mas tendo o mesmo acesso da minoria aos bens universais. Significa assumir a sobriedade, a simplicidade voluntária como valores-mestres de um novo modo de viver e de ver o mundo.

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