domingo, 23 de outubro de 2011

Porquê O Condor Errante

Abreviando meu sobrenome, os colegas da escola durante a infância me apelidavam Condor. Comecei desde muito cedo a sentir uma profunda atração por essa ave. É uma imagem que me projeta para uma identidade almejada, com a face que gostaria que predominasse - embora no dia a dia, a maioria das vezes, não é a que predomina - entre a multiplicidade de tendências cognitivas e comportamentais, simultaneamente antagônicas e complementares, que me definem e que o tempo todo são redefinidas por minhas teias de inter-retroações.

Para os povos dos Andes Centrais, o condor é símbolo de liberdade. Talvez seja porque mora em picos inacessíveis, porque é capaz de voar tão alto como quem se liberta das amarras dos pertencimentos, dos apegos, dos conceitos ego-etno-sociocêntricos, porque empreende vôos que o aproximam do sol, lhe permitem penetrar nas nuvens, impregnar-se de vento, olhar a terra e os seres que a habitam desde uma perspectiva onde toda e qualquer fronteira – incluindo as que foram erguidas pelo pensamento entre o “eu” e o “outro”, o “sujeito” e o “objeto”, entre as diversas formas de conhecer, narrar e interagir com o mundo - mostra inelutavelmente sua natureza ilusória.

A primeira vez que vi um condor ao vivo, porém, não foi no céu, mas na terra: na estepe patagônica aos pés dos Andes da província argentina de Santa Cruz, enquanto devorava a carcaça de um bezerro. Foi desse jeito brutal que descobri que o condor, esta majestosa ave de inatingíveis vôos, é também um abutre que se alimenta de carniça. Isso o religa umbilicalmente à terra, à sua natureza carnal, às demais espécies das quais depende para a sua própria existência.

Quando presenciei aquela cena, tive um vislumbre de consciência: por quanto possa me desprender das representações que construí a partir da minha experiência e do meu diálogo com o real, da maneira de organizar e dar sentido à experiência que estruturei ao longo da minha vida, dos meus axiomas e desejos ocultos e manifestos, de tudo o que a minha biografia esculpiu em meu corpo e meu cérebro desde antes que saísse do útero de minha mãe, por quão panorâmico, abrangente, multifacetado e polifônico possa ser o olhar que adotar sobre o mundo, enfim por quão altos possam ser os meus vôos cognitivos, continuarei amarrado até o meu último fio de cabelo à minha incompletude, seja qual for a origem ou natureza que queiramos atribuir-lhe (a da minha configuração bioquímica, da minha animalidade, da minha psique, do meu aparelho neurocognitivo ou qualquer outra condição que partilho com os meus semelhantes humanos e não-humanos). Os altos vôos que permitem ao condor lançar um olhar panorâmico sobre o mundo e, simultaneamente, o vínculo umbilical que possui com a terra me fizeram sentir mais próximo ainda deste incrível e perturbador animal.

Vi muitos outros condores na Patagônia, muitos deles apenas uns pontinhos escuros cruzando um céu de um azul tão intenso que chegava a ferir os olhos ou jogando de esconde-esconde entre as nuvens que envolviam os picos da cordilheira, projetando sua sombra majestosa em vales, montanhas e estepes áridas, desoladas, de uma beleza para mim estonteante no seu áspero despojamento... Porém, aquele condor que vi debruçado sobre a carcaça de um bezerro com o bico ensangüentado, dilacerando a carne do animal morto para alimentar-se dela, permanecerá para sempre na minha memória como um mestre de pensamento e de vida, um instigador de transformações cognitivas e emocionais, um interlocutor silencioso que contribuiu a modificar minhas representações sobre o mundo e sobre mim mesmo.

O Condor Errante quer ser simplesmente isso: vôos cognitivos sem rumo pré-fixado, sem fronteiras, sem obrigações, mas com a consciência plena – e honestamente explicitada – de que, por quão alto meu pensamento possa voar, estará sempre, inevitavelmente amarrado às minhas obsessões, meus desejos, meus anseios, minhas neuroses, enfim, a meu intrínseco inacabamento.

Desejo, então, bons vôos para tod@s nós!

Um comentário:

  1. Admiro muito sua consciência de incompletitude e inacabamento em nossa essência. Essa consciência parece elevar o conhecimento para vôos significativamente mais altos e tão mais interessantes.
    Gosto de ver o que pensa, como pensa e como diz.

    ResponderExcluir