Aos vinte e um anos, no remoto – nesta época
de aceleração frenética da existência - final do século passado, mais
exatamente em 1997, passei diversos meses em Cuba e, no dia a dia daquela ilha
caribenha em pleno período especial
(uma época de enormes privações que o país sofreu após a queda da ex-União
Soviética, que sustentava sua frágil economia), aprendi que posso viver com
muito menos do que antes acreditava que precisasse: intui, pela primeira vez,
que as nossas “necessidades” não são “dados”, mas construções fruto da nossa
dialógica com o real, construções nas quais intervém nossa biografia e o
emaranhado conjunto de valores, conceitos, expectativas da sociedade de onde
emergimos.
No interior da Isla Grande, como também é chamada, vivi uma experiência que me
proporcionou o primeiro vislumbre de uma consciência que só dois anos depois adquiriria
uma forma nítida. Durante uma viagem de mochila pelas províncias do interior do
país, ao chegar à pequena cidade de Manzanillo no distrito de Bayamo, o mais
pobre de toda a ilha, me acometeu uma violenta infecção intestinal e nem o
posto de saúde mais próximo, nem o hospital onde depois me direcionaram
dispunham de antibióticos para fazer frente à emergência. Uns amigos de lá, em
cuja moradia extremamente humilde me encontrava hospedado, chamaram então um
curandeiro, alegando que a prática comum na sua comunidade para este tipo de
doenças era um tipo de massagem nos tornozelos praticado por estes mestres –
reconhecidos pelo povo, mas não pelas autoridades médicas e políticas do país -
da medicina “tradicional”. Desesperado, deixei que o curandeiro fizesse a
massagem nos meus tornozelos, apesar de não cultivar muitas expectativas sobre
os efeitos daquela “cura” posto que, em minha maneira disjuntiva de perceber o
real, não conseguia enxergar conexão alguma entre aquela massagem e a bactéria
que estava afetando meu organismo. Ao acordar no dia seguinte, por minha enorme
e imensamente grata surpresa, estava completamente sem febre e quase sem mais
cólicas. Poucas horas depois, estava em plena saúde.
Naquele dia, apesar de não ter esta
consciência ainda nitidamente definida, comecei a vislumbrar a possibilidade de
que saberes, formas de conhecimento e interação com o mundo ditas
“não-científicas” não deviam possuir um valor cognitivo inferior, nem – e disso
tinha sido testemunha – uma menor eficácia na produção de transformações no
real do que as das consideradas “científico-racionais”.
Minha experiência em Cuba produziu também
outra mudança de percepção importante. Lá vivenciei em primeira pessoa, sem
mediações ideológicas, a dura realidade de um regime totalitário que exerce um
controle obsessivo de cada aspecto da vida dos seus cidadãos. O que mais me
impactou, entre vários outros aspectos, foi saber que cada quarteirão de toda
cidade e aldeia da ilha possui “observadores” não revelados dos chamados
Comitês de Defesa da Revolução, órgãos de repressão política, que podem ser
qualquer pessoa e que por isso qualquer comentário, comportamento ou atitude
“suspeitas” para o regime podem ser “delatadas” à polícia política pelos seus
vizinhos, amigos ou conhecidos.
Também me estarreceu perceber que, em uma
época de completo desastre econômico-social do país, o regime mesclava uma vazia
retórica ufanista – resultava cômico, se não tivesse sido trágico, ver todo dia
coloridos murais com rostos de Che Guevara estampados e empolgantes palavras
alardeando o espírito solidário e íntegro dos cubanos pintados nas paredes de
prédios decadentes em cujas esquinas meninas com quatorze ou quinze anos
expunham seus corpos para turistas europeus famintos de sexo com menores de
idade, e dentro de cujos velhos e despojados aposentos amiúde
contrabandeavam-se charutos, rum e outros produtos ou “vendiam-se” e
estrangeiros filhas ou irmãs para conseguir comer aquele mês, aquela semana ou
até mesmo por aquele dia – à mais ferrenha vigilância da população.
À raiz dessas experiências, não só
abandonei minhas antigas romantizações que projetavam sobre a realidade da ilha
desejos, utopias e ilusões pessoais, mas adquiri uma consciência clara, que
mantenho até hoje, de que nenhuma sociedade se transforma a partir de simples
reajustes nas suas estruturas e relações econômico-políticas, muito menos se
impostas à força. Nenhum “homem novo” se cria a partir de diretrizes vindas de
cima para baixo: toda e qualquer mudança individual e coletiva na maneira como
produzimos e interagimos com o real é um processo necessariamente e
intrinsecamente global e dialógico que envolve a construção gradual e
compartilhada de novas perspectivas cognitivas, afetivas, corporais,
relacionais, a elaboração conjunta, baseada na reciprocidade de um mundo comum
e nunca é inevitável e previsível, mas sempre inacabada, incerta e aberta ao
inesperado e até ao (atualmente) impensável.
É inevitável: viajar, quando estamos
abertos ao mundo e não encerrados em nossas prisões conceituais, produz mudanças em nosso modo de pensar e de
viver.