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Quando a prenderam, seu menino Carlos, que ainda não tinha
dois anos, estava com ela. Planejava leva-lo para a casa da avó, no Nordeste,
mas não se sentia segura em pegar um ônibus que cruzaria o país inteiro, muito
menos um avião sabendo que seu nome poderia estar nas listas de terroristas
procurados pela segurança nacional. Achava engraçado: estudantes que se reuniam
para ler Marx, Gramsci, Lukács e refletir sobre a política do país, organizavam
manifestações e performances, escutavam música de protesto e o mais perigoso
que faziam era vez por outra pichar umas paredes eram perigosos terroristas.
Mas Emanoel tinha sido preso uns meses antes e o nome dela poderia estar na
lista dos procurados, não podia se arriscar. Alguns companheiros do movimento
estudantil tinham enveredado para a luta armada, a repressão estava caindo em
cima de quem quer que os conhecesse e ela com certeza estava na mira. Não
estava acostumada com a clandestinidade, mas conhecia quem podia ajuda-la a
falsificar sua identidade para viajar com segurança. Por enquanto, Carlos
estava com ela. Até quando, depois de arrombarem a porta da casa da amiga,
invadi-la e revirá-la por completo a encontraram num quarto secundário, pequeno
e semiescondido com a criança nos braços e o menino começara a gritar
desesperadamente. Emanoel nunca soube exatamente o que acontecera aquela noite.
Companheiros que estiveram presos com Anaí tinham lhe contado que um dos
sequestradores, incomodado com o choro da criança, teria lhe dado uma coronhada
de fuzil na cabeça. A única certeza era que seu menino de menos de dois anos
tinha morrido naquela mesma noite num hospital da serra fluminense, onde a
amiga de Anaí o levara depois do sequestro da mãe, e o laudo médico apontava
“traumatismo craniano”, sem mais detalhes. Emanoel soubera da morte de seu
filho muitas semanas mais tarde, quando estava no presídio, e só pôde ir para o
hospital onde Carlos morrera quinze anos depois, quando regressara ao Brasil
após um longo exílio. Tivera acesso ao laudo, mas o médico que o redigira e que
tinha atendido o menino não trabalhava mais lá. Desistira de ir atrás dele,
achava que não teria forças para encarar o que tinha acontecido com seu filho.
Quando, quinze anos antes, no presídio, lhe falaram que Anaí tinha sido presa,
estava desaparecida e Carlos tinha morrido só não caíra nas garras da loucura
porque a contabilidade de cada sevícia mantinha viva sua lucidez, alimentando
seu ódio. Com as entranhas despedaçadas o ódio era sua fonte de vida, a corda
que o segurava toda vez que seu corpo e sua vontade ameaçavam ceder e jogá-lo
no abismo da insânia. No exílio conseguira voltar a viver, conseguira voltar a
amar, mas nunca mais quisera ser pai e, antes de voltar a ficar com qualquer
mulher, fizera vasectomia.
Vira companheiros serem assassinados na sua frente ou não
resistirem aos maus-tratos. Vira amigos morrerem eletrocutados, afogados,
estrangulados ou em consequência de espancamentos. Lembrava com profusão de
detalhes cada sessão de tortura: não havia um choque, uma pancada, uma queimadura,
uma ferida que não estivesse tatuada, cravada a ferro e fogo em sua memória.
Seu corpo era um mapa de tatuagens invisíveis, qualquer marca física do que
vivera tinha sido apagada, mas continuava tudo vivo debaixo de sua pele.
me prenderam no dia em que o Brasil ganhou o tricampeonato
mundial, quatro a um contra a Itália no Estádio Azteca da Cidade do México… não
esqueci um minuto daquelas horas longas, pesadas, permeadas de angústia e
entusiasmo… aquele bar em Copacabana afundado em verde-amarelo, bandeiras
penduradas, camisas amarelas empapadas de suor frio, cerveja escorrendo em
rios, amigos fumando nervosamente, meu coração literalmente rasgado: a paixão
ou a consciência, quem venceria naquele dia? e Anaí que preferira assistir em
casa porque Carlos era pequeno, será que tivera uma premonição do que
aconteceria? ia ficar com eles, mas a galera me tentou insistentemente, todo o
mundo ia estar lá, que ingenuidade achar que uma turma ligada ao movimento
estudantil poderia assistir um jogo de futebol num lugar público, mas o que
esperar de uns garotos de pouco mais de vinte anos, não sabíamos nada da vida,
apesar de alguns de nós já serem pais éramos moleques, aprendizes de gente…
sabíamos do AI-5, mas que perigo representávamos? o único que fizéramos até
então eram reuniões de leitura e discussão num grupo amador de estudos
marxistas, umas performances semi-improvisadas, participar em duas ou três
manifestações, o que a ditadura tinha a temer de nós? que babacas! o coração
explodia em minha garganta, uma parte de mim queria que aqueles surdo-cegos
embrulhados de verde-amarelo recebessem uma brutal paulada na cara, que se
sentissem como um viciado quando acaba a droga e ao olhar-se no espelho percebe
o lixo sórdido que se tornou, mas a cada lance da seleção a parte de mim que
restava saltava da cadeira em ânsia e em delírio… crepitei de arrebatamento ao
gol de Pelé, chafurdei na aflição após o empate de Boninsegna, me estremeci com
o gol de Jairzinho, respirei aliviado e chorei de felicidade com os gols de
Gerson e Carlos Alberto Torres… lembro de cada abraço, amigos, desconhecidos,
homens, mulheres, travestis, todos vibráramos em uníssono, nossos suores se
miscigenando, as lágrimas de uns molhando os rostos dos outros… o álcool ainda
se misturava ao júbilo em minhas veias quando saia do bar com uma mão no ombro
de um amigo e na outra uma garrafa de cerveja, iria buscar um orelhão para
ligar para Anaí, foram instantes, um carro sem placa parou ao nosso lado, dois
energúmenos saíram e nos empurraram para dentro, um torno invisível me
sufocava, pancadas, dor de cabeça, uma sensação de incredulidade, uma névoa
invadindo meus olhos, o mundo tornando-se um rascunho borrado, depois disso não
lembro mais nada, só que acordei me afogando, uma mão segurando minha cabeça
num balde cheio d’água… naquele momento lembrei de minha mãe, suas lágrimas ao
despedir-se na minha partida para o Rio, aquele abraço demorado, segundos
intermináveis, um abraço que permaneceu até hoje em minhas entranhas, ia fazer
faculdade, três anos, três anos desde que saíra de Natal, da minha infância,
lembrei-me disso naquele instante e senti uma saudade despedaçante…
Natal, cujas curvas de areia, em suas lembranças encharcadas
de saudade, dançavam sinuosas ao compasso das ondas deixando entrever pelas
frestas de sua mata segredos indizíveis, excitantes enigmas de uma amante
altiva que tinha virado as costas ao seu rio e os seus mangues e se embatucava
de maquiagem para disfarçar sua miséria. Remoto rincão na esquina do vento,
ereção oriental de um continente desgarrado (quiçá apontando para a vulva
inatingível, esquecida da Mãe África… às vezes, pelo menos, assim pensava),
veia sangrante de uma terra infeliz, eternamente dilacerada entre resignação
teimosa e irredutível rebeldia. Em sua memória, não passava da lânguida e por
vezes melancólica parceira de momentos felizes de uma inocência inexoravelmente
perdida, se é que alguma vez realmente existira. Tinha voltado a viver em sua
cidade natal vinte anos depois de tê-la abandonado, quinze depois de ser jogado
no exílio, e quando chegara quase nada tinha mudado, embora não se parecesse
mais à amante gentil e sensual de suas saudades, mas ao curral provinciano
escravizado por oligarquias que no íntimo sempre soubera que era, mas cuja
verdadeira natureza recusava-se a evocar. Nos quase trinta anos que se seguiram
ao seu regresso a vira crescer, caótica e descontrolada, devorando suas orlas e
encostas, assassinando suas matas, estuprando seu solo de onde rebentavam a
cada dia, como horríveis excrescências, novos arranha-céus. A vira tornar-se um
pátio de vizinhos grotescamente disfarçado de metrópole, seus lugares públicos
largados às traças ou privatizados, shoppings tomando o lugar das praças: vira
sua aldeia natal tornar-se um amontoado esparso de condomínios de luxo e
barracos mergulhados no vazio de ruas sem calçadas, sem árvores, sem vida,
meras pistas de trânsito.