sábado, 12 de novembro de 2011

Na natureza selvagem (Parte 2)

Em um post de algumas semanas atrás disse que queria compartilhar com meus leitores duas experiências de viagem e de mergulho em ambientes não-urbanos que deixaram fortes pegadas em minha forma de ver o mundo. Naquela ocasião, contei minha aventura no Parque Nacional da Terra do Fogo. Deixem-me agora narrar-lhes a segunda experiência que mais contribuiu para forjar minha obsessão cognitiva pelas relações entre homem e natureza não-humana.

Estava viajando de mochila pela Nicarágua, na América Central, e fui passar uns dias na Isla Zapatera, uma ilha completamente coberta de floresta tropical seca – vegetação típica da região do Pacífico mesoamericana – com apenas duas pequenas comunidades humanas, uma em cada uma de suas extremidades, compostas por casas isoladas esparsas entre as colinas e os bosques. É a segunda maior ilha do imenso Lago Cocibolca, o segundo maior das Américas, um autêntico mar interno separado por uma faixa de terra de apenas vinte quilômetros do Oceano Pacífico. Em outras eras geológicas era um braço de mar e, quando a terra o fechou tornando-o um gigantesco lago, os tubarões que ali permaneceram adaptaram-se ao novo ambiente, reproduziram-se e deram origem à única espécie no mundo de tubarão de água doce. Constelado de ilhas e ilhotas de origem vulcânica, na sua margem norte-ocidental o lago vê erguer-se a delicada silhueta do vulcão Mombacho, com quatro crateras ativas, inteiramente coberto por uma manto de bosque nuvoso berço de uma riquíssimas biodiversidade.

Deitada no meio do lago, com o vulto da enorme Isla de Ometepe – a maior ilha lacustre do mundo, com dois vulcões ativos em sua superfície – às costas e o suave e viçoso perfil do vulcão Mombacho à frente, a duas horas de lancha da cidade mais próxima, sem água encanada e luz elétrica, com pouquíssimos humanos em seu extenso território e totalmente imersa numa densa selva, de onde vez por outra despontam petróglifos pré-colombianos, a Isla Zapatera representava para mim uma esplêndida oportunidade de afastamento temporário do meu universo de referência, das formas urbanas de organização do espaço e do tempo.

Apesar de estar novamente associado a muitas próteses (protetor solar, boné legionário, lanterna, repelente em spray e em creme, anti-histamínicos orais, óculos de sol com grau, entre outros elementos), o primeiro impacto foi um autêntico soco na cara. Um calor úmido e pegajoso despertava-me uma vontade constante de tomar banho, mas tinha pouquíssima água à disposição. Insetos de todo tipo e tamanho pregavam em minha roupa e nas partes descobertas do meu corpo, incomodando-me e assustando-me. O calor insuportável dava muita sede, tinha pouca água mineral disponível e não confiava na água das casas dos nativos, por não ser filtrada. Não havia nada a fazer a não ser caminhar nos arredores do bosque ou sentar em frente ao lago e contemplar a paisagem, tendo como únicas luzes as da lua e dos vagalumes assim que escurecia (evitava usar a lanterna para não descarregar a bateria).

Na primeira noite dormida em uma cama de campanha completamente coberta por um mosquiteiro, que aumentava exponencialmente a sensação de calor tórrido daquele lugar, via escorpiões passeando debaixo da cama ao meu lado; marimbondos enormes rondando o mosquiteiro; vislumbrava vultos e silhuetas de espécies não reconhecidas; escutava sons não familiares na escuridão da cabana; às vezes, sentia vontade de me levantar para beber água ou urinar e tinha medo de fazê-lo, apesar de dispor de uma lanterna, por causa dos animais que vislumbrava na escuridão. Com isso tudo, pude perceber mais uma vez o quanto meu olhar sobre a realidade, minhas reações às circunstâncias externas, minhas emoções e pensamentos, meus desejos, minha maneira de viver e organizar o tempo, minha forma de experienciar o mundo estão impregnadas até a medula, levam a tatuagem dos ambientes urbanos nos quais cresci e sempre vivi. A partir do segundo dia, caminhando na selva para conhecer petróglifos da civilização chorotega, que vivia na costa pacífica da Nicarágua antes da conquista europeia e usava aquela ilha para cerimônias rituais, a presença de um guia local conseguiu modificar em parte minha estratégia de atenção.

A mudança contínua da paisagem; o incentivo constante do guia para prestar sempre atenção ao caminho e não pisar nos lugares errados; a incrível diversidade de espécies vegetais e animais que a cada momento, inesperadamente, surgiam e sumiam; a exigência de estar totalmente presente para não perder os passos do nativo; aquela multiplicidade de formas, cores, cheiros completamente novos para mim, me confrontando o tempo todo com o inesperado, me despertaram aos poucos uma atenção mais refinada e aguçada. Nos dias seguintes, o que em um primeiro momento tinha me incomodado e assustado não me deixava mais tão rígido e nervoso como no começo, pois minha atitude perante os acontecimentos, minha estratégia de interação com o mundo tinha sofrido certa mudança: a atenção cada vez mais sutil que, pouco a pouco, a exposição ao ambiente no qual estava mergulhado tinha despertado em mim, conseguiu também silenciar pelo menos em parte, por momentos, os ruídos internos que inicialmente me dominavam, muitos dos quais eram exatamente os mesmos que impregnaram minha experiência na Terra do Fogo.

A interação com guias locais e moradores do lugar, cujas atitudes com relação ao ambiente me serviam de modelo e constante incentivo a agir de outras formas – mesmo que conseguisse reproduzir as deles só em mínima parte, pois suas sensibilidades sensoriais eram bem diferentes da minha – e cuja presença me dava confiança, contribuiu de maneira significativa para essa minha leve mudança de estratégia, que só não foi mais profunda porque minha permanência na Isla Zapatera durou apenas alguns dias.

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