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Ainda não tinha se acostumado e viver naquele lugar sem
alma, que não reconhecia, e talvez nunca se acostumasse até o fim de sua vida. Mas
foi ali onde - quem diria? - reconhecera depois de mais de quarenta anos um dos
seus torturadores do DOI-CODI. Um velho de aparência jovial, atarracado,
bonachão, a pele avermelhada pelo sol: ninguém diria, ao vê-lo sentado na mesa
de uma cafeteria com sua esposa, que adorava jogar álcool nos olhos e nos
ouvidos de jovens amarrados numa cadeira. Devia ter quase oitenta anos, o pouco
cabelo que lhe restava totalmente branco, as rugas esculpindo impiedosamente em
seu rosto a passagem do tempo, mas Emanoel o reconhecera imediatamente. Nunca
esquecera aquele olhar incolor, distante, um dos primeiros com quem se deparara
após ser sequestrado, um olhar burocrático que permanecia impassível enquanto
praticava as mais abjetas atrocidades. Enquanto o observava, com o corpo
sacudido pelos choques que aquele homem aplicava metodicamente em seus
genitais, se perguntava se aquela impassibilidade não escondia um deleite
selvagem, inominável. Tinha certeza daquilo: em seu íntimo só podia estar gozando;
não havia outra explicação para todo aquele desatino.
Devia estar de férias com sua mulher e não reconhecera
Emanoel. Tinha perguntado se podia pegar uma cadeira vazia na mesa onde o velho
estava sentado, de propósito, só para saber se se lembrava dele, e o homem
respondera sem o menor aceno de surpresa ou assombro. O olhara nos olhos, vira
seu rosto e não o reconhecera. Mais de quarenta anos antes o tinha seviciado
durante semanas a fio, todo dia, mas sequer lembrava o rosto dele! Quando o
homem e a esposa saíram da cafeteria no shopping para turistas onde os tinha
encontrado, que naqueles dias se tornara uma algazarra internacional
multicolorida e excitada, os seguira discretamente até descobrir que estavam
hospedados num flat em Ponta Negra. Passara alguns dias observando suas rotinas
e se dera conta de que, todo final de tarde, enquanto a esposa ficava no
apartamento para descansar, apanhava um táxi na porta do flat para ir caminhar
à beira da praia.
Achava engaçado que o velho tivesse sido sequestrado no dia
em que a seleção brasileira, pela qual ele ficara arrebatado quarenta e quatro
anos antes num bar em Copacabana, sofrera sua maior derrota num gramado,
perdendo por sete a um contra a Alemanha na semifinal da segunda Copa do Mundo
jogada em casa. O jogo tinha atrasado a saída do velho para a praia e Emanoel
estava a ponto de desistir, achando que naquele dia não iria mais caminhar, mas
de repente o vira saindo do portão do flat e acenara do outro lado da rua para
o taxista, um velho amigo que tinha aceitado ser cúmplice na operação. Estava
cabisbaixo, atônito, visivelmente transtornado e Emanoel pensara que era a
primeira vez que o via manifestar alguma emoção. O táxi, ao invés de se dirigir
para a orla, dera uma volta ao quarteirão. Emanoel estava aguardando numa rua
lateral e quando o veículo acostara ao seu lado abrira a porta e subira
rapidamente. O velho não tivera tempo de reagir. Anunciara o sequestro,
encapuzara a vítima e a obrigara a ficar abaixada, segurando sua cabeça. Lembrara-se
das garras que o asfixiavam no carro sem placa onde fora sequestrado quarenta e
quatro anos antes; uma mistura de álcool, incredulidade e medo arrebentando sua
cabeça e estraçalhando as fagulhas de alegria que o haviam incendiado minutos
antes. O que estaria sentindo, no que estaria pensando naquele exato momento
aquele velho? Estaria igualmente perplexo e assustado? Com luvas nas mãos, pegara
o celular do homem e o jogara pela janela para evitar que pudessem rastreá-lo. Levaram
o velho para a garagem da casa de Emanoel, em Lagoa Nova, uma antiga morada que
resistia acerrimamente à especulação vertical. Tinha colocado papéis de
isolamento acústico em todas as paredes, sem mais preocupações.
se escutarem? que escutem, como escutavam os que moravam nos
bairros onde nos flagelavam a qualquer hora do dia e da noite, nem se
preocupavam em botar proteção acústica, bastava um rádio tocando alto e nossos
gritos se perdiam no ar, todo o mundo escutava e não ouvia, nada daquilo
existia, éramos e somos fantasmas, espectros assustadores a serem mantidos no
limbo do esquecimento e a inexistência, porque se evocados podemos abalar as
certezas dessas legiões de surdo-mudo-cegos que fingem não acreditar em nós...
casas de tortura no coração de bairros “nobres”, que palavra ridícula para
referir-se a essa escória, enquanto nos abrasavam, eletrocutavam e fustigavam
pendurados a um pau eles tomavam café da manhã, liam o jornal, estudavam,
trepavam, escondiam suas gravidezes e abortavam às escondidas, se maquiavam,
compravam sapatos, traiam seus maridos e mulheres, tinham ciúmes, fingiam que
se amavam, viviam suas vidas anestesiados da nossa presença... era impossível
que não escutassem, apenas faziam de conta que nada estava acontecendo, como
farão se escutarem qualquer coisa agora... são os mesmos, não mudaram, então
que escutem...
uma semana com este velho preso numa cadeira, amarrado pelas
mãos e pelos pés... toda manhã acordo com uma lembrança nova, perfeitamente nítida,
de algumas das brutalidades que me infligiu quando tinha vinte anos... essa dor
insustentável não se pode explicar, tentei inúmeras vezes, mas ninguém nunca
entendeu realmente... todo dia acordo com vontade de reproduzir nele as
torturas que me aplicara, uma a uma, com a mesma sistematicidade, mas quando
encaro este velho flácido e debilitado algo me bloqueia... não sei o quê, um
pudor íntimo quiçá... com esta idade não resistiria a um pau-de-arara, nem a
choques... mais de quarenta anos atrás, ele não teria tido qualquer escrúpulo
em pendurar um velho de quase oitenta anos se a ditadura o considerasse um
inimigo, mas eu não, não consigo... o que está acontecendo? queimei cigarros em
sua pele já ardida pelo sol do Nordeste, o enchi de socos e chutes, arranquei-lhe
pelos do peito e do púbis durante uma semana e ainda não senti prazer nenhum,
não sinto qualquer alegria em devolver a este homem uma parte mínima de tudo o
que sofri em suas mãos... acreditava que iria me embevecer, mas não estou
gozando, não me excito com seus gritos de dor... sequer sinto qualquer sentimento
de dever cumprido, qualquer sensação de justiça... só consigo ter pena dele e
de mim mesmo... diz que não sabe como foi assassinada Anaí e onde estão seus
restos, passou anos no DOI-CODI e quer que eu engula... invejo esta sua
impassibilidade: eu não conseguia mantê-la nos interrogatórios deles, ao
vislumbrar a sala já estava tremendo, meus intestinos já entravam derretidos...
e o pior é que parece sincero, não há resquício de mentira em seu olhar... será
que não sabe mesmo? o que me enlouquece e atordoa é a obtusa, inarredável
obstinação deste velho em negar seu ódio político, seu deleite perverso – tá, eu
não consigo sentir nenhum, mas os da espécie dele sentem, eu sei! –e até mesmo iniciativa
própria nas torturas que praticava contra a gente no DOI-CODI...
Cansado dessa teimosia, após sete dias de cativeiro Emanoel pegara
uma lagartixa de uma das paredes de sua garagem, desamarrara as mãos do preso,
o obrigou a segurar o bicho e lhe ordenara que o torturasse. Agora você está
sob as minhas ordens: cumpra-as! Sem pestanejar, o velho arrancara com zelo o
rabo da lagartixa, sem manifestar qualquer emoção a não ser cansaço, e em
seguida, esticando o corpo do animal com as mãos e ajudando-se com os dentes, o
despedaçara aos poucos com metódico rigor, cortando-lhe cada uma das patas e
por último, enquanto estava ainda vivo contorcendo-se em agonia, a cabeça.
Emanoel saíra e voltara para a garagem com um penico cheio das fezes do próprio
velho daquela manhã. O colocara nos joelhos do preso e ordenara: agora come tua
merda, é uma ordem! O velho recusara-se. Come tua merda! O velho ficara
impassível. Come tua merda, porra! Deu-lhe um soco na cara, que começara a
sangrar, mas o velho continuara sem obedecer. Emanoel, então, agarrara sua
cabeça e a enfiara no penico cheio de bosta.
Esquartejar vivo um ser que sente dor o faz sem pestanejar,
mas para comer tua merda a recusa é possível?
O velho tinha vomitado e estava chorando, tentando disfarçar
na semiescuridão. Emanoel se espelhou naquele choro silencioso, abafado. Naquele
momento, renunciou a querer entender, se é que aquilo que o atormentava havia
mais de quarenta anos podia ser entendido, e também sentiu vontade de chorar.
A televisão noticiava todo dia o desaparecimento de um
turista carioca de férias em Natal, um militar aposentado, e a polícia estava
investigando o que acontecera. Naquele mesmo dia, iriam encontra-lo desacordado
num terreno baldio. Algo lhe dizia que o velho não o denunciaria. Se estivesse
enganado, que diferença fazia a essa altura da vida?
Emanoel saiu para buscar uma bacia de água e um pano para
limpar a cara do velho. Assim que a porta da garagem ficou para trás, não
conseguiu reter as lágrimas.
Imagem: Cena do filme Batismo de Sangue, de Helvécio Ratton (Brasil, 2007).