sábado, 22 de outubro de 2011

Migrações e migrantes

Semana passada fui convidado para compartilhar algumas reflexões sobre o ato de migrar e a condição do imigrante no âmbito de um encontro sobre a imigração italiana no Brasil organizado pela Associação Cultural Ítalo-Brasileira do Rio Grande do Norte, dentro do ciclo de eventos A Identidade Italiana, que acontece toda primeira sexta-feira do mês no auditório da Livraria Siciliano em Natal. Como imigrante e andarilho que nasceu, se criou e passou parte de sua juventude na Itália, viveu dois anos na Espanha, vive há quase uma década no Nordeste do Brasil, período no qual passou um semestre na Argentina, e que tem nas costas várias viagens como mochileiro pelo mundo afora, pensei que seria uma excelente oportunidade para refletir sobre o que o ato de migrar e o de viajar e a condição do nômade, do viajante e do imigrante podem nos dizer acerca da condição humana.

Comecemos pela minha experiência. Sou europeu e fui adotado pela América do Sul. Ao longo de mais de trinta anos de existência, vivi em três países de diferentes continentes e passei longos períodos em outros dois. Sempre que pude, embora não tanto quanto teria gostado, devido a uma situação financeira nunca estável, fiz longas viagens de mochila pelo mundo. Sempre me senti atraído pelo encontro com o diferente; sempre procurei o deslumbramento, a vertigem, centelhas de significado para a minha existência no contato com outros lugares, outros povos, outras paisagens, no mergulho – embora por períodos breves – em ambientes naturais não-urbanos. Sempre senti um impulso irresistível para o conhecimento e a mestiçagem com outros estilos de vida, com outras maneiras de pensar o mundo e de vivê-lo. Nunca me senti enraizado em lugar algum, sentindo à flor da pele aquela sensação de estrangereidade que Claude Lévi-Strauss assumiu como um seu hábito cognitivo e existencial, a sensação de estranhamento constante que o fez sentir estrangeiro em todo lugar, inclusive em sua cultura de origem. É um sentimento que estimula em quem o vivencia uma maior abertura cognitiva e perceptiva, pois o sentir-se estrangeiro em todo lugar favorece uma percepção mais nítida do que as mais diversas manifestações do humano em comum, já que enfraquece os olhares ego, etno e sociocêntricos. Esse anseio de observar o homem desde “um ponto de vista elevado e distante o suficiente para abstraí-lo das contingências próprias a esta sociedade ou àquela civilização”, como afirma Lévi-Strauss em Tristes Trópicos (p. 53), que em meu caso sempre estendeu-se também a todas as demais manifestações da matéria e da vida, além de impregnar minha atitude cognitiva afetando minhas interações com os outros humanos e com o ambiente no dia a dia, me injetou por muitos anos e ainda me injeta um desejo constante de viajar, de mudar de ares, de ampliar meus horizontes.

Minhas experiências de imigrante e de viajante, além de alimentar minhas inquietações existenciais e minha constante busca de sentido (pelo menos até que decidi tentar não buscar nada e apenas viver), me despertaram com cada vez mais nitidez a consciência de que pensarmos, falarmos e agirmos com base em “identidades”, isto é, em representações fixas, estáticas, coerentes e unívocas de nós mesmos, dos demais e do mundo é uma das maiores falácias nas quais já caímos. Já refleti em outro texto postado neste blog sobre nossa tendência a recortarmos do real determinadas características bio-psico-socioculturais, a organizá-las coerentemente expulsando os elementos que não se encaixam na representação que pretendemos construir, a cristalizá-las em um conjunto orgânico dotado de sentido e a “identificarmos” com elas, para podermos afirmar: “este(a) sou eu”. Ao fazermos isso, porém, mutilamos o real e nos mutilamos: excluímos do que (achamos que) somos toda uma miríade de elementos, fatores, experiências – não necessariamente coerentes entre si – que também contribuem para (re)configurar-nos. Aliás, como afirma Michel Serrès, toda “identificação” é uma mutilação, pois só tem um ser idêntico a nós: nós mesmos! Sempre inspirando-me em Michel Serrès, prefiro pensar-me – e pensar o humano – não como uma identidade acabada, mas como uma teia rizomática de pertencimentos, aberta e em permanente (re)definição em sua inter-retroação consigo mesmo, com os outros e com o mundo. A condição do viajante, do nômade e do imigrante, ao obrigar-nos a quebrar muitas de nossas fronteiras (as mentais muito mais do que as geográficas), pode permitir-nos tomar consciência dessa nossa natureza ineludivelmente híbrida, percebermos mais claramente nossa intrínseca mestiçagem bio-etno-noo-socio-cognitivo-cultural.

É isso, pelo menos, o que vivencio em minha própria experiência. Europa, América do Sul e passagens cognitivas, afetivas e às vezes físicas pela África e pela Ásia: é este o emaranhado de influências que contribuiu para desenhar minha biologia, minha psique, que ajudou a construir minhas estratégias cognitivas, minhas maneiras de me relacionar com as pessoas e com as demais configurações da matéria e da vida. Um rápido olhar panorâmico sobre o meu cotidiano, uma observação das manifestações externas do meu modo de ser, dos meus gostos, hábitos e sentires o confirmaria imediatamente: tomo chimarrão freqüentemente, em uma cuia pequena à maneira argentina; só como macarrão se for é al dente e só gosto de café feito na moka; pratico meditação Zen e busco um contato vivo com a natureza não-humana sempre que se apresenta uma oportunidade; rejeito a formalidade e atribuo importância ao contato físico e à afetividade, tendências relacionais próprias dos brasileiros; dependendo do meu estado psíquico e dos meus metabolismos biológicos, cada um moldando recursivamente os outros, às vezes penso em português, outras vezes em espanhol e outras ainda em italiano; quando falo qualquer um destes idiomas, inclusive a minha língua materna, infiltram-se sorrateiramente outros sotaques. Trata-se apenas de alguns exemplos, que me revelam enquanto ser culturalmente híbrido, cognitiva, psíquica e socialmente mestiço. E, por isso mesmo, consciente da sua incompletude, dos seus limites, aberto para outras formas de ser e entender a vida, de conhecer e construir o mundo.

Tomar chimarrão, pensar em português e enxergar o mundo a partir de alguns elementos da filosofia Zen me torna menos italiano? Um jovem nascido na periferia de Natal que percebe sua experiência de vida, suas pulsões e seus anseios melhor representados no rock ‘n roll do que no samba de Adoniran Barbosa ou no coco zambê não é “genuinamente” brasileiro e nordestino? Hoje em dia, na Itália, produtos considerados ícones da “italianidade” como o queijo parmesão, vinhos de alto padrão como o Brunello di Montalcino e o azeite de oliva da Toscana são produzidos por mão de obra indiana, cingalesa, senegalesa, burkinafasense, ucraniana, chinesa e de outras nacionalidades de imigrantes. Isso torna esses produtos menos “autênticos”, menos “italianos”? Cada alimento que comemos, cada célula do nosso corpo, cada artefato com que nos hibridamos, cada tendência cognitiva a partir da qual operamos a organização da nossa experiência é produto de múltiplas miscigenações, mutuamente imbricadas, inseparáveis.

O que quer dizer ser “autenticamente” brasileiro(a), nordestino(a), italiano(a), sul-africano(a), chinês(a)? Pela minha própria experiência de nômade e de imigrante, penso que queira dizer simplesmente ser um híbrido, uma teia aberta e em incessante (re)configuração de pertencimentos, emoções, representações, gostos, formas de ver o mundo, comportamentos, atitudes, buscas... enfim, ser humano... com tudo de inacabado e de mestiço que isso implica.

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