sábado, 22 de outubro de 2011

Algumas considerações sobre humanos e não-humanos

Um comentário postado pela amiga @cassi_ferreira ao artigo Os #indignados e a inclusão dos não-humanos no social, que publiquei neste blog, me despertou novas reflexões sobre as fronteiras mentais que há muito tempo erguemos entre os domínios do humano e do não-humano, fronteiras que impregnam, condicionam e muitas vezes pré-direcionam - na maioria dos casos, sem que nos demos conta - nosso olhar sobre o mundo, influenciando a forma como agimos com relação a nós mesmos, aos outros e a todos os demais seres vivos e não-vivos que partilham conosco deste planeta. Ao responder às observações de minha amiga, lembrei-me de que até não muito tempo atrás não apenas os artefatos tecnocientíficos, mas muitas manifestações daquilo que hoje tendemos sem muita dificuldade - mas nem sempre! - a perceber como parte da "humanidade" era excluido desse universo: mulheres; populações não-ocidentais (ou "não-ocidentalizadas"), não brancas e não-urbanas; deficientes; etc. Ainda hoje, alguns relutam em incluir no âmbito do plenamente "humano" (e, conseqüentemente, a reconhecer os mesmos direitos percebidos como "naturais" para os representantes "legítimos" da espécie) os homossexuais, os presos e outras categorias artificialmente construídas e arbitrariamente cristalizadas (afinal, somos todos - de uma forma ou de outra - pansexuais e hermafroditas; somos todos simultaneamente crueis e carinhosos, brutais e generosos, bárbaros e ternos).

Após cultivarmos durante séculos um olhar sobre o real imbuído de categorias puras, me parece que desenvolvemos a tendência automática a rejeitar com veemência até mesmo a insinuação de que poderiamos não ser tão fechados, tão acabados, tão estáticos, enfim tão "puros" assim. Apesar de Copérnico ter-nos tirado já há bastante tempo do centro do universo, de Darwin ter-nos afastado há um século e meio do centro da criação e de Freud ter-nos arrancado da torre de controle de nossa personalidade, de Morin ter-nos mostrado nossa índole não apenas sapiens e faber (racional e manipuladora do real), mas também demens e ludens (poética, imaginativa, intuitiva, emotiva, lúdica, dionisíaca), ainda assim parece perturba-nos pensar em nós mesmos enquanto híbridos inacabados (re)definidos por uma complexa - no sentido etimológico de complexus: o que está tecido junto - teia de elementos simbólicos e materiais, vivos e não-vivos, enfim não estritamente "humanos" que nos (re)definem o tempo todo e que o tempo todo contribimos para (re)definir.

Recortamos aleatoriamente do real determinadas características biológicas, neuropsíquicas, socioculturais, etc., lhes conferimos coerência e organicidade, as enrijecemos e voilá: temos o "Homem" (com maiúscula e no nasculino), pronto, imutável, perfeito, senhor do universo, dominador da "natureza" da qual não faz parte, racional e autônomo, independente de tudo o mais, fim último da criação ou da evolução... o homem vitruviano desenhado por Leonardo, o Davi esculpido por Michelângelo. Mas já surgem os problemas: e quem não se encaixa tão completamente nessa representação? Quem não enxerga o mundo, não organiza a experiência e a sociedade a partir da mesma lógica tão "perfeita" e "exata"? Quem não tem a mesma "virilidade", a mesma "autonomia racional", a mesma cor da pele? Inútil se alongar no que isso implicou ao longo dos últimos cinco séculos. Podemos ver claramente os perigos que pensar com categorias puras acarreta. Mesmo assim, continuamos a iludir-nos acerca de uma nossa "essência" supostamente imutável, de uma nossa "identidade" supostamente unívoca, coerente e acabada, continuamos a negar nossa relação umbilical com o não-humano, com o não-vivo, com o "outro" humano que percebemos como "diferente", mas que participa de nós tanto quanto nós participamos dele(a).

Entre final do século XVIII e começo do século XIX, Jeremy Bentham questionava por quê, se os franceses já tinham reconhecido que características como cor da pele, origem social, etc. não diferenciavam os humanos entre si, outras características como a vilosidade da pele, o número de pernas ou a posição do os sacrum ainda serviam de desculpa para não incluir uma imensa quantidade de seres - os animais - no mundo moral.
Reconhecer sua dívida comas espécies não-humanas sempre suscitou medo e repulsa no homem ocidental, especialmente o homem que se concebeu como “moderno”, no sentido atribuído por Bruno Latour à expressão: o de um de purificador de híbridos. É um medo que se reflete na linguagem. Quando afirmamos, por exemplo, que os campos de concentração, as limpezas étnicas, os genocídios, os crimes e atrocidades que mais nos chocaram trouxeram à tona a bestialidade humana, expressamos um medo ancestral de encararmos nossa natureza biológica, corporal e animal, manifestamos nossa visão paradigmática, tatuada há milênios no núcleo oculto da nossa forma de perceber o real, da natureza não-humana como um universo brutal no qual a competição reina incontrastada, no qual a lei do mais forte elimina sem piedade os mais fracos. Uma visão que, ou nos apavora até o ponto de chegarmos a nos considerar seres externos a este universo, nascidos para subjugá-lo, ou nos faz acreditar ser a competição desenfreada a nossa verdadeira natureza e a cultura, a ética, a solidariedade e a cooperação meros vernizes concebidos para disfarçar nossa face real. O que essa visão não nos permite enxergar é que – como sustenta o etólogo Frans de Waal depois de anos passados estudando o universo dos grandes primatas não-humanos – somos por natureza seres bipolares, com a dupla cabeça de Jano: individualistas e solidários, violentos e fraternos, brutais e doces, egoístas e generosos... da mesma forma que muitas espécies não-humanas com as quais guardamos enormes afinidades genéticas, cognitivas, emocionais, comportamentais. Os campos de concentração, as limpezas étnicas, os genocídios, os crimes e atrocidades que mais nos chocam decorrem do que temos de mais propriamente humano: a capacidade – parafrasando o neuropsiquiatra e etólogo Boris Cyrulnik - de construir e habitar mundos totalmente despercebidos, preenchidos por representações, enquanto a nossa animalidade nos torna também seres empáticos e solidários.

Não surpreende, então, a dificuldade em pensarmos as tecnologias digitais de comunicação como sujeitos que participam ativamente da (re)configuração do mundo, como agentes sociais: até pouco tempo atrás, nem mesmo alguns "humanos" participavam legitimamente disso e ainda os animais, os vegetais e os minerais estão deles excluídos (em nossas mentes, pelo menos). A mesma ideia de "pós-humano" (assim como a de pré-humano) é, a meu ver, mutilante, pois implica na existência de um "humano" pleno, fechado, acabado que seria "superado" por outras formas de existência. As próprias visões transhumanistas como a deo neurocientista Miguel Nicolelis, que vislumbra um cérebro definitivamente "liberado" da "escravidão" do corpo se comunicando com os demais cérebros e com o resto do real independentemente do pensamento e da linguagem, apesar das possibilidades que prospecta para quem perdeu os movimentos do corpo e poderia voltar a interagir com o mundo a partir de uma interface cérebro-máquina que transferiria sinais motórios diretamente do cérebro para um exoesqueleto que devolveria ao primeiro os estímulos externos, parecem-me mais uma expressão desta purificação essencialista, pois reduzem o humano a um seu órgão - o cérebro - e o que supostamente o caracteriza - a mente, a consciência - a uma emergência de processos internos a este último.

Será que as novas hibridações que estamos construíndo com as mídias digitais nos ajudarão a quebrar, ou pelo menos atenuar um pouco a rigidez das fronteiras que edificamos entre nós e o resto do existente? Ou criarão novas fronteiras, novas separações, novas exclusões? Caberá a nós, em nosso dia a dia, construirmos a resposta.

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