segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Literatura e cinema: escolas de vida

Tenho uma íntima convicção: a de que obras literárias, cinematográficas ou qualquer outra expressão artística nos revelam muito mais sobre o homem, a sociedade, a natureza, a vida do que complexos tratados científicos (sem que isso impeça que as ciências estejam tão impregnadas de subjetividade, intuição e criatividade quanto as artes). Como Edgar Morin em A cabeça bem feita, concebo literatura e cinema como “escolas de vida” (p. 48). Em primeiro lugar, porque estimulam um processo de identificação/projeção de nossas pulsões, nossos medos, nossas neuroses, nossos fantasmas, nossos desejos. Revela Morin na obra citada:Livros constituem ‘experiências de verdade’, quando nos desvendam e configuram uma verdade ignorada, escondida, profunda, informe, que trazemos em nós, o que nos proporciona o duplo encantamento da descoberta de nossa verdade na descoberta de uma verdade exterior a nós, que se acopla à nossa verdade, incorpora-se a ela e torna-se a nossa verdade. (p. 48).

Isso é possível porque, como o próprio Morin acrescenta, livros e filmes são “escolas da complexidade humana” (p. 49). Enquanto, na maioria dos casos, as obras de caráter científico – mesmo as mais abertas e polifônicas - necessitam separar para discernir, conceituar (o que é sempre um processo de redução do real), recortar, definir um foco, objetivar distinguindo o que é da ordem do sujeito do que é da ordem dos fenômenos observados (mesmo quando, e isso é cada vez mais freqüente nas ciências contemporâneas, reconheça a participação ativa do sujeito na construção do seu objeto e a impossibilidade de um conhecimento depurado de subjetividade). Dos romances, cartas, relatos autobiográficos, ensaios e filmes emergem imbricados, compenetrados, inextricavelmente entrelaçados os mais diversos aspectos da existência, as mais diversas dimensões do real, as mais diversas faces do sujeito. É na arte, como afirma ainda Morin, “que percebemos que Homo sapiens é, ao mesmo tempo, indissoluvelmente, Homo demens” (p. 49).

Medos, anseios, obsessões, impulsos, condicionamentos conscientes e inconscientes: a emaranhada teia de fatores subjetivos e objetivos (entendendo estes últimos como os determinados pelas redes de inter-retroações do sujeito com o mundo, concebendo o sujeito e tudo o mais como híbridos em permanente redefinição) contribui para configurar determinadas situações, relações, personalidades, estratégias cognitivas que aparecem em toda a sua complexidade nas obras artísticas, que não estão amarradas aos imperativos da conceituação.

No dia a dia, temos a insana tendência a operarmos o pensamento por redução, simplificação, univocidade. É mais prático e nos proporciona uma – mesmo que frágil - sensação de certeza., de segurança. Construímos nossa imagem dos outros a partir de uns poucos elementos, os que mais se adéquam a nossos sistemas prévios de significações ou que mais ganham saliência ao nosso olhar. Os organizamos em uma representação coerente e esta impregna nossa percepção, contribui para estruturar nossa experiência, configura os nossos julgamentos. Nos sentimos aliviados ao poder afirmar: fulana é uma prostituta, beltrano é um pai de família, sincrano é um traficante... Tudo tem seu lugar no mosaico que vamos compondo e que acaba se tornando a própria realidade que habitamos.

Mas eis que os romances e os filmes – pelo menos, os bons romances e os bons filmes – vêm ai e estilhaçam esse castelo de certezas. Nos sacodem, nos tiram o chão, abalam nossos fundamentos, nos instigam a repensar nossos pressupostos. Nos mostram que um torturador tem nossas mesmas obsessões, um assassino tem nossos mesmos medos, uma prostituta tem nossos mesmos sentimentos, um estelionatário tem nossos mesmos fantasmas, um oficial nazista capaz de matar milhares de pessoas numa câmara de gás é um pai carinhoso e um amante da boa música, um terrorista é afetuoso e desprendido, um traficante é capaz de solidariedade e altruísmo, um ladrão tem ética... Nos mostram que cada um de nós está parasitado pelos mais mesquinhos desejos e os mais elevados arrebatamentos, os mais violentos impulsos e a mais desinteressada generosidade. Nos revelam nossas múltiplas faces, nos colocam diante de nossa natureza intrinsecamente, ineludivelmente contraditória... porque no que é inacabado, no que é aberto, no que é polifônico, no que é mestiço os opostos não se excluem, mas convivem e se complementam.

Por isso, quando quero conhecer-me mais a fundo ou compreender melhor a realidade, não procuro ensaios científicos nem os meios de comunicação: leio um bom romance ou assisto um bom filme.

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