sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Os #indignados e a inclusão dos não-humanos no social

Domingo passado, enquanto conversava na mesa de uma cafeteria sobre o #ForaMicarla e sobre o movimento global dos #indignados com uma amiga vinda de João Pessoa e um amigo que participou da ocupação da Câmara Municipal de Natal em junho, uma afirmação deste último me despertou algumas inquietações congitivas (vício de pesquisador... e o pior é que tenho uma trajetória ainda relativamente breve, além de totalmente instável no mundo acadêmico, com o qual tenho uma relação bastante conturbada!). Meu amigo sustentou que as redes sociais são ferramentas que canalizaram a indignação com a administração municipal de Natal e permitiram formas inéditas de articulação horizontal, espontânea e apartidária, mas se as pessoas não tivessem saído às ruas, não tivessem acampado na Câmara de Vereadores, etc. o movimento não teria produzido mudança social e política alguma. Em parte, concordo: dificilmente teríamos hoje uma Comissão Especial de Inquérito da Câmara investigando os contratos de aluguel da Prefeitura de Natal se centenas de pessoas não tivessem apoiado o acampamento #PrimaveraSemBorboleta. Porém, a ideia das redes sociais e das mídias digitais em geral como "ferramentas" não me satisfaz conceitualmente.

Após aquela nossa conversa, no mesmo dia meu amigo - que coordena o Movimento dos Blogueiros Progressistas no Rio Grande do Norte (#BlogProgRN) - postou em seu blog uma reflexão muito inst
igante sobre as novas formas de sociabilidade que emergem da cibercultura. Em seu texto, defende que o carácter rizomático da comunicação digital, ao quebrar as fronteiras entre emissão e recepção, permite a auto-organização dos sujeitos info e favorece a emergência de formas de produção e socialização do conhecimento descentralizadas e colaborativas. Eu acrescentaria: também nos estimula a reprensarmos o social - e, consequentemente, a política, a democracia e a ideia de agentes socio-econômico-políticos - incluindo algo que sempre participou de sua incessante (re)configuração, antes que a denominada "modernidade" (que segundo alguns - entre eles, eu - nunca existiu) purificasse o real separando drasticamente os domínios do humano e do não-humano: os objetos, as coisas, os artefatos... aqueles híbridos simultaneamente materiais e simólicos, noológicos e tecnológicos que participam ativamente, desde sempre, da contínua (re)construção do nosso mundo comum.

Na verdade, meu amigo e eu reconhecemos ainda na mesa do bar que estávamos falando do mesmo, apenas sob lentes conceituais diferentes. Ele afirmou - e eu concordo - que se os jovens não tivessem saído às ruas, em Natal como na Tunísia, no Egito, na Espanha, no Chile, em Nova Iorque, em Londres ou em São Paulo, não haveria tido #ForaMicarla, Primavera Árabe, Movimento 15-M, as lutas estudantis chilenas por uma educação pública gratuita e universal, #OccupyWallStreet, #OccupyLondon ou #OcupaSampa. Se toda essa inquietação, esses anseios por mudanças, essa vontade de participação não tivessem saído das telas dos computadores e dos smartphones as pegadas sociais, políticas e culturais deixadas por esses movimentos em diversos países teriam sido bem menos profundas. Eu acrescentei - e ele concordou - que, se não tivessem existido as redes sociais, esses movimentos simplesmente não teriam existido.

Nesta perspectiva, as redes sociais não foram uma "ferramenta": foram um ator social que desempenhou um papel decisivo na emergência e no entrelaçamento de anseios coletivos, de novas formas de organização e sociabilidade, de novas maneiras de fazer política e de participar da vida pública. Humano e não-humano, simbólico e material, psicológico e tecnológico são apenas artifícios conceituais: no real, tudo está mutuamente imbricado e (re)define tudo o mais. Não há sujeitos autônomos, separados dos objetos, que tomam decisões com base apenas em argumentos lógico-racionais (o que são, afinal, a lógica e a razão se não maneiras entre outras de operar o pensamento, totalmente impregnadas de subjetividade, obsessões, desejos, pulsões, fantasmas, etc., mas arbitrariamente depuradas e artificialmente recortadas de tudo o mais que as configura
pelo pensamento ocidental clássico?) e instrumentos mecânicos prontos para o uso. Há, apenas, híbridos bio-psico-noo-sócio-tecno-culturais que se interdefinem mutuamente e se (re)constroem incessantemente. As redes sociais não foram a ferramenta que possibilitou a articulação do #ForaMicarla e dos demais movimentros de #indignados: foram um dos agentes sociais que permitiram sua emergência. As inquietações e o desejo de mudança de milhares, talvez milhões de pessoas em muitos países não teria aflorado, se cruzado, se fundido e decidido se auto-organizar se não tivessem se hibridado com as tecnologias digitais de comunicação. Essas últimas, por sua vez, não teriam propiciado a emergência desses movimentos se determinados anseios e pulsões não tivessem participado de suas hibridações com sujeitos humanos.
Por quê manifestamos tanta resistência em incluir os objetos - e, em geral, tudo o que não é humano - no social... e, consequentemente, no que define o humano? Por quê nos custa tanto reconhecermos nossa condição ineludivelmente híbrida? Hoje em dia, uma parte da própria ciência clássica abandonou uma percepção rígida das fronteiras entre o humano e o não-humano (animal, vegetal, mineral), entre o vivo e o não-vivo, entre o material e o imaterial ou amaterial. Por quê opomos tanta resistência à superação de uma noção de "sujeito" que mutila o real, reduzindo esses últimos a meros seres conscientes dotados de "razão" e capazes de tomar decisões autônomas, independentemente das teias de causas, condiçoes e elementos simbólicos e materiais, humanos e não-humanos das quais participam? Por quê nos negamos, muitas vezes com veemência, a reconhecer status de sujeitos, de agentes ou atores sociais aos não-humanos? Concluo com esses interrogantes, que espero despertem em quem me lê novas inquietações e contribuam para a disseminação rizomática de novas reflexões.

2 comentários:

  1. Confesso que fico indignada quando leio ou escuto alguém desdenhar - e até negar - o poder mobilizador das redes dentro das mídias sociais. Adorei o texto porque também compartilho de ideias semelhantes. E talvez aqueles que insistem em não considerar o papel determinante dessas novas formas de comunicação sejam apenas sujeitos ainda não familiarizados com a simples operalização dessas novas tecnologias. O que não é inédito, basta considerar o espanto e o receio causados pelo surgimento de outros meios, a exemplo da própria tv e o rádio, outrora. Mas espero que isso seja só uma questão de tempo, e que todos se rendama a Lator.

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  2. Pois é, Cassi, e não se trata nem mesmo só dos artefatos tecnológicos e dos meios de comunicação: até relativamente pouco tempo atrás, opunha-se resistência a incluir no domínio do humano (o homem vitruviano acabado e imutável, não o humano híbrido em permanente reconfiguração de quem estamos falando aqui) e do social as mulheres, os negros, os indígenas, os deficientes... hoje, alguns ainda negam-se a incluir na "humanidade" e na "sociedade" os homossexuais, os presos e outras categorias. O que dizer, então, dos objetos, das tecnologias e dos meios de comunicação?

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