Parte de um conjunto de três
contos que ganhou o segundo prêmio no Concurso
Literário Bartolomeu Correia de Melo, organizado pela Cooperativa
Cultural Universitária do Rio Grande do Norte.
***********
Continuação…
1ª Parte: http://ocondorerrante.blogspot.com.br/2014/02/o-rascante-sussurro-da-noite-1-parte_20.html
O dia na universidade tinha
sido esgotante, os olhos de Slatko se mantinham abertos à força. Acabava de
descer na parada de casa e cruzar a esquina, uma viatura da polícia militar com
as luzes apagadas se aproximou dele, um instante, só conseguiu enxergar dois
vultos, duas fardas sem rosto, lembra que lhe faltou o ar, uma mão apertava-lhe
a boca, outras mãos torceram-lhe os braços e o empurraram para dentro, o que
está acontecendo?, sua vista embaçou-se, o mundo se tornou uma tela caótica de
cores borradas e tons de preto, não sabia quanto tempo passou, não conseguia
respirar, ar, por favor, quero ar, não entendia as perguntas, o que querem
saber?, o que querem de mim?, a sacola de plástico o sufocava, os chutes e os
golpes de cassetete nas costas e na cabeça o atordoavam, por quê?, por quê isso
tudo?, não enxergava mais nada, queria dormir, o sono e a dor se fundiam em seu
rosto, Carol observava o céu e uma inquietação informe lhe devorava o estomago,
por quê o celular de Slatko estava desligado?, ar, ar por favor, como queria
dormir, só isso, dormir, talvez aquilo tudo fosse um sonho.
Aquela foto… Carol sentiu uma
mão invisível agarrar-lhe o pescoço e durante uns segundos achou que iria
morrer sufocada. Aquela foto divulgada no jornal e compartilhada nas redes
sociais. Slatko tinha visitado a ocupação um dia antes que acabasse levando
comida para Carol, roupa limpa e notícias de María José, de quem a ex-sogra
estava cuidando temporariamente. Um fotógrafo do diário de maior circulação da
cidade o flagraram em meio a uma vintena de mascarados. A única pessoa com o
rosto descoberto. María José estava dormindo, Carol correu no banheiro e jogou
água gelada na cara, o ar estava voltando aos poucos, mas um frio improviso,
que parecia nascer-lhe do peito, gelou seu rosto e em segundos se infiltrou nas
dobras mais íntimas do seu corpo inteiro. O celular de Slatko estava desligado,
sem motivo, e aquela foto… Ele precisa saber, pensou enquanto se agasalhava
inutilmente daquele frio que provinha de suas próprias entranhas. Quando
aparecer, precisa saber. Mas – o frio se tornou tão intenso que a paralisou –
voltará a aparecer? Uma obsessão macabra penetrou em seus ossos desde o fundo
de sua alma: seu pior pesadelo, que quase todo o dia há anos a atormentava,
parecia estar se tornando presságio.
A quem denunciar o
desaparecimento, se foi a própria polícia provavelmente quem o levou? O centro
de direitos humanos, companheiros de velha data, os primeiros que a acolheram
quando chegara a Natal e a ajudaram a reconstruir sua vida, sim, eles eram os
únicos que poderiam fazer alguma coisa. Tremendo de frio, a pele estremecida
por uma angústia inominável, agarrou seu celular. Antes de ligar, entrou numa
rede social. #CadêSlatko O grito lhe brotou das vísceras, na esperança de que
alguém, quem quer que fosse, o escutasse e compartilhasse.
De repente, viu. Não sabia quantas
horas haviam passado, se estava sonhando ou desperto, o corpo cravado de
hematomas, as feridas internas, a pele queimada, rasgada, nada disso importava,
não sentia mais dor, mesmo enquanto seguravam sua cabeça num balde cheio
d’água, não conseguia respirar, mas o que importava?, naquele instante,
enquanto simulavam afoga-lo para que confessasse que tinha depredado a Câmara
Municipal e delatasse os demais participantes da ocupação, naquele instante ele
viu. Viu Miroslav, viu sua casa em Mostar, viu homens armados, viu o pai de
Miroslav, sérvio-bósnio casado com uma muçulmana, viveram anos juntos, criaram
juntos a filha do primeiro casamento dela com um bósnio-croata, se amavam, mas
alguns diziam que aquilo era uma aberração, que a origem de todos os males dos
sérvios da Bósnia era a convivência com os muçulmanos e os croatas, era preciso
limpar a nação, começando pelas famílias, e as pessoas acreditavam. Viu
Miroslav, aos quinze anos, apontando um revólver para a irmã, obrigando-a a se
despir na frente de outros homens que observavam a cena encorajando-o,
excitados, o viu ficar de pau duro, ele que nunca antes tinha transado, mas em
cujas fantasias a primeira e até então única inspiração tinha sido a própria
irmã, o viu violentá-la repetidamente na frente de dezenas de homens, o viu
extasiar-se com seus gritos de pânico e horror, gozar com suas lágrimas e
sofrimento, viu a irmã de Miroslav sendo estuprada por toda a milícia antes de
ser amarrada a uma árvore e ter os genitais mutilados a facadas e finalmente,
quase um ato de piedade, ser crivada de balas. Viu Miroslav atirar a
queima-roupa em seu pai que não quis entregar sua esposa à milícia, traidor da
causa sérvia. Viu a mãe de Miroslav estuprada por uma matilha de milicianos na
frente dele e depois decapitada, a cabeça dela empalada junto a dezenas de
outras, e viu Miroslav excitado, imbuído de violência e de ideais de pureza, o
viu torturar, estuprar, assassinar dezenas, centenas de pessoas, sem culpa, às
vezes com medo, com a convicção íntima, a certeza irremovível de que estava
agindo pelo bem de seu povo. Viu relâmpagos, cortes, fragmentos esparsos do
mosaico de uma adolescência, uma adolescência que o curso da história
incentivara a abafar, na tentativa vã de erradica-la da consciência. Uma
adolescência impronunciável, que não conseguia articular em palavras e assim
parecia ter desvanecido da memória. Quando voluntários de uma ONG o tinham
resgatado das ruas, em Bolonha, não lembrava seu nome nem como tinha chegado
até lá. Não tinha documentos, era preciso começar do zero. Então se
autobatizara Slatko, que em sérvio que dizer doce e é também o nome de uma
compota que pode ser feita com frutas ou pétalas de rosa. Naquele instante,
enquanto os descendentes dos capitães-do-mato o afogavam, ele viu.
Tinham passado poucas horas,
mas #CadêSlatko já era um viral nas redes sociais e o telejornal do meio dia
repercutira o desaparecimento de um suposto envolvido na ocupação da Câmara.
Talvez tivesse sido isso a salvá-lo, ou talvez o fato dos sequestradores terem
descoberto a tempo que era um professor universitário, um favelado ou um
estudante da periferia com certeza não teriam tido a mesma sorte. Foi
encontrado vivo, desmaiado e com sinais evidentes de tortura, à margem da BR na
entrada da cidade.
Fugiram por alguns dias para
uma casa de pescadores no topo de uma duna num viçoso rincão do litoral
potiguar, onde o Rio Tubarão penetra docemente, qual amante delicado, na
imensidão acolhedora do Atlântico e manguezais, praia, dunas e caatinga
entrelaçam-se numa dança inebriante e imprevisível. Um céu límpido respingado
de estrelas, o farfalhar das folhas dos mangues ao vento, o canto das ondas ao
longe: a noite ia tecendo um leve sussurro ao redor do mundo, que se tornava
estrídulo e rascante enquanto Carol lembrava, contando a Slatko o que achava
que ele precisava saber.
Lorenzo, o primeiro homem com
quem tinha compartilhado muito mais do que noites de gozo, a aguardava imóvel,
o olhar inquieto, o que houve?, uma angústia indizível nascia-lhe do fundo da
garganta, fazia anos que as Abuelas investigavam sua origem, a obsessão que o
atormentava desde que descobrira que era filho de desaparecidos, e finalmente
tinham descoberto a identidade de sua mãe, Carol não entendeu, Lorenzo deveria
estar radiante, aguardava aquele momento há anos, por quê aquela angústia?,
afinal quem era sua mãe? Florencia Menotti, uma estudante de Rosario
desaparecida em julho de 1976. Carol sentiu seu corpo estilhaçar-se, como se um
rio em cheia violenta tivesse transbordado de seu útero, despedaçando-a.
Florencia Menotti, sua mãe, era também a mãe de Lorenzo, o homem com quem tinha
concebido María José.
Encostou a cabeça no peito de
Slatko, que acariciou seu cabelo. Cabelo macio, levemente ondulado, que parecia
acompanhar o canto das cigarras daquela noite clara, de uma suavidade
dilacerante. O cheiro delicado do cabelo de Carol apaziguou por uns instantes a
ânsia informe que escorria em suas veias. Ela também precisa saber, pensou.
Quis abrir a boca, mas deixou para lá. Não tinha certeza de qual vida tinha
vivido realmente, a de Miroslav ou a de Slatko. Talvez nenhuma delas. O eco das
ondas, desde a restinga, acalentava o ar enquanto a noite engolia seus vultos
abraçados.