quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

O rascante sussurro da noite - 1ª Parte

Parte de um conjunto de três contos que ganhou o segundo prêmio no Concurso Literário Bartolomeu Correia de Melo, organizado pela Cooperativa Cultural Universitária do Rio Grande do Norte.

**********

Slatko repudiava toda forma de violência. Carol não rejeitava, eventualmente, ações políticas radicais e sempre saía às ruas com o rosto coberto, para se proteger do gás lacrimogênio e do spray de pimenta que nunca deixavam de temperar os protestos, dizia, com ou sem atos violentos por parte dos manifestantes, um reflexo condicionado herdado pelos policiais diretamente dos capitães-do-mato, mas também porque – embora não o reconhecesse para si mesma – tinha medo de ser reconhecida, vigiada, sequestrada no meio da madrugada, jogada em porões invisíveis, impossíveis de enxergar por estarem diante dos nossos olhos, um medo indizível, subcutâneo, que lhe trazia à mente cenas aterradoras cada vez que via um homem fardado, imagens de choques elétricos nos mamilos, pelos pubianos arrancados, afogamentos simulados, rádios tocando a um volume ensurdecedor, gritos encobertos, cenas povoadas por rostos desconhecidos, corpos empilhados em aviões, cadáveres se decompondo no fundo do mar, cenas que nunca tinha presenciado, nunca tinha vivido, mas pareciam escorrer em seu sangue, estavam entranhadas em seu estomago.
       
O dia se infiltrava pelas janelas do ônibus abarrotado fazendo deslizar os raios do sol da manhã entre corpos espremidos, diluindo-os numa mistura de suor e perfumes baratos. O vulto do Arena das Dunas em construção, indiferente, corria ao lado da janela e Slatko, segurando-se no encosto de um assento, navegava numa região indistinta entre o sonho e a lembrança, lutando contra o impulso de suas pálpebras, insensíveis aos apelos da conveniência, de se fecharem. Mais uma vez, não tinha conseguido dormir. Como quase toda noite, há meses, tinha acordado de madrugada com o coração explodindo-lhe na garganta, calafrios atravessando-lhe a coluna, as mãos tremendo, o ar abandonando-o, uns instantes apenas, mas suficientes para fazer-lhe perder completamente o sono e mergulhá-lo numa angústia indefinida, um remorso insondável, sem forma, sem motivo.

Não tinha dormido com Carol, embora mesmo ao lado dela muitas vezes não deixara de ficar nesse estado. Mas preferia não mostrar-se assim, não acordá-la, para não obriga-la a partilhar de outra angústia. Sabia que ela tinha seus pesadelos, mais do que suficientes para ofertar-lhe outros.

A batalha contra suas pálpebras, naquele ônibus que como todo dia reavivava a experiência dos navios negreiros, era inglória e durante alguns instantes não conseguiu vencê-las. Alguns segundos nos quais os poros de seu pau, roçado involuntariamente pelos seios de uma passageira sentada na cadeira em que estava se segurando, dilataram-se repentinamente deixando-se invadir pela mesma embriaguez nervosa de quando os dedos de Carol o acariciavam, de quando o agarrava com firmeza e cuidado para que não doesse, um cuidado que – ele sabia, mas nunca o admitiu para si mesmo nem para ela - só quem partilhava de um sofrimento comum podia entender.

Abriu os olhos percebendo-se em ereção, doendo esmagada pela cueca e as calças, e a dor o jogou de volta ao ônibus que estava prestes a chegar à sua parada. Lecionava em uma universidade particular há pouco mais de dois anos, nunca tinha se acostumado e pensava que nunca se acostumaria ao turno matutino.


Carol dizia que a pele de Slatko adquiria sabor e tonalidades em contato com sua língua. Por isso, deixava que a língua dela forjasse seu prazer como o cinzel de um escultor. Estavam juntos há quase três anos, estrangeiros cuja pátria de acolhida eram o peito um da outra. No começo fora umidade. Percorria o corpo nu de Carol vagarosamente, explorando suas dobras com os dedos, com as palmas das mãos, com a ponta da língua, detendo-se em seus rincões mais improváveis, à procura de seus cheiros mais remotos, de seus sabores mais ocultos. Gostava especialmente de roçar com seus lábios os lábios mais íntimos dela e de lambe-los logo após, de baixo para cima e de cima para baixo, inspirando as variações de aroma que iam despertando-se. Carol amava despir aos poucos o pau dele, umedecer com a ponta da língua o vale quente e úmido entre a glande e o prepúcio, percorrer com dedos brincalhões sua virilha, traçar mapas em seu ventre, seu peito e suas costas com seus mamilos túrgidos. Seus mamilos, um levemente menor que o outro, com nuances de textura e sabor que só ele conseguia perceber, até mesmo a cor deles diferia ligeiramente: cada mamilo tinha sua personalidade, única, espelho quiçá da alma inquieta e múltipla de que eram extensões.

Exploraram seus corpos durante meses, uma avidez desbravadora que após três anos de namoro tinha minguado, mas à medida que o ardor sexual ia arrefecendo a atração entre eles se fortalecia pela descoberta de afinidades – por vezes estrídulas – que os aproximaram cada vez mais. Eram muito diferentes, mas um laço visceral, cuja origem e natureza nenhum dos dois conseguia vislumbrar, parecia destinado a uni-los além de suas vontades. O fato é que estavam juntos há quase três anos e tinham-se tornado, um para a outra, o chão que ambos, durante muito tempo, tinham deixado de sentir sob seus pés.

Continua...

Nenhum comentário:

Postar um comentário