Parte de um conjunto de três contos que ganhou o segundo prêmio no Concurso Literário Bartolomeu Correia de Melo, organizado pela Cooperativa Cultural Universitária do Rio Grande do Norte.
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Slatko
repudiava toda forma de violência. Carol não rejeitava, eventualmente, ações
políticas radicais e sempre saía às ruas com o rosto coberto, para se proteger
do gás lacrimogênio e do spray de pimenta que nunca deixavam de temperar os
protestos, dizia, com ou sem atos violentos por parte dos manifestantes, um
reflexo condicionado herdado pelos policiais diretamente dos capitães-do-mato,
mas também porque – embora não o reconhecesse para si mesma – tinha medo de ser
reconhecida, vigiada, sequestrada no meio da madrugada, jogada em porões
invisíveis, impossíveis de enxergar por estarem diante dos nossos olhos, um
medo indizível, subcutâneo, que lhe trazia à mente cenas aterradoras cada vez
que via um homem fardado, imagens de choques elétricos nos mamilos, pelos
pubianos arrancados, afogamentos simulados, rádios tocando a um volume
ensurdecedor, gritos encobertos, cenas povoadas por rostos desconhecidos,
corpos empilhados em aviões, cadáveres se decompondo no fundo do mar, cenas que
nunca tinha presenciado, nunca tinha vivido, mas pareciam escorrer em seu
sangue, estavam entranhadas em seu estomago.
O dia se infiltrava pelas janelas do ônibus abarrotado fazendo deslizar os
raios do sol da manhã entre corpos espremidos, diluindo-os numa mistura de suor
e perfumes baratos. O vulto do Arena das Dunas em construção, indiferente,
corria ao lado da janela e Slatko, segurando-se no encosto de um assento,
navegava numa região indistinta entre o sonho e a lembrança, lutando contra o
impulso de suas pálpebras, insensíveis aos apelos da conveniência, de se
fecharem. Mais uma vez, não tinha conseguido dormir. Como quase toda noite, há
meses, tinha acordado de madrugada com o coração explodindo-lhe na garganta,
calafrios atravessando-lhe a coluna, as mãos tremendo, o ar abandonando-o, uns
instantes apenas, mas suficientes para fazer-lhe perder completamente o sono e
mergulhá-lo numa angústia indefinida, um remorso insondável, sem forma, sem
motivo.
Não
tinha dormido com Carol, embora mesmo ao lado dela muitas vezes não deixara de
ficar nesse estado. Mas preferia não mostrar-se assim, não acordá-la, para não
obriga-la a partilhar de outra angústia. Sabia que ela tinha seus pesadelos,
mais do que suficientes para ofertar-lhe outros.
A
batalha contra suas pálpebras, naquele ônibus que como todo dia reavivava a
experiência dos navios negreiros, era inglória e durante alguns instantes não
conseguiu vencê-las. Alguns segundos nos quais os poros de seu pau, roçado
involuntariamente pelos seios de uma passageira sentada na cadeira em que
estava se segurando, dilataram-se repentinamente deixando-se invadir pela mesma
embriaguez nervosa de quando os dedos de Carol o acariciavam, de quando o
agarrava com firmeza e cuidado para que não doesse, um cuidado que – ele sabia,
mas nunca o admitiu para si mesmo nem para ela - só quem partilhava de um sofrimento
comum podia entender.
Abriu
os olhos percebendo-se em ereção, doendo esmagada pela cueca e as calças, e a
dor o jogou de volta ao ônibus que estava prestes a chegar à sua parada.
Lecionava em uma universidade particular há pouco mais de dois anos, nunca
tinha se acostumado e pensava que nunca se acostumaria ao turno matutino.
Carol
dizia que a pele de Slatko adquiria sabor e tonalidades em contato com sua
língua. Por isso, deixava que a língua dela forjasse seu prazer como o cinzel
de um escultor. Estavam juntos há quase três anos, estrangeiros cuja pátria de
acolhida eram o peito um da outra. No começo fora umidade. Percorria o corpo nu
de Carol vagarosamente, explorando suas dobras com os dedos, com as palmas das
mãos, com a ponta da língua, detendo-se em seus rincões mais improváveis, à
procura de seus cheiros mais remotos, de seus sabores mais ocultos. Gostava
especialmente de roçar com seus lábios os lábios mais íntimos dela e de
lambe-los logo após, de baixo para cima e de cima para baixo, inspirando as
variações de aroma que iam despertando-se. Carol amava despir aos poucos o pau
dele, umedecer com a ponta da língua o vale quente e úmido entre a glande e o
prepúcio, percorrer com dedos brincalhões sua virilha, traçar mapas em seu
ventre, seu peito e suas costas com seus mamilos túrgidos. Seus mamilos, um
levemente menor que o outro, com nuances de textura e sabor que só ele
conseguia perceber, até mesmo a cor deles diferia ligeiramente: cada mamilo
tinha sua personalidade, única, espelho quiçá da alma inquieta e múltipla de
que eram extensões.
Exploraram
seus corpos durante meses, uma avidez desbravadora que após três anos de namoro
tinha minguado, mas à medida que o ardor sexual ia arrefecendo a atração entre
eles se fortalecia pela descoberta de afinidades – por vezes estrídulas – que
os aproximaram cada vez mais. Eram muito diferentes, mas um laço visceral, cuja
origem e natureza nenhum dos dois conseguia vislumbrar, parecia destinado a
uni-los além de suas vontades. O fato é que estavam juntos há quase três anos e
tinham-se tornado, um para a outra, o chão que ambos, durante muito tempo,
tinham deixado de sentir sob seus pés.
Continua...
O dia se infiltrava pelas janelas do ônibus abarrotado fazendo deslizar os raios do sol da manhã entre corpos espremidos, diluindo-os numa mistura de suor e perfumes baratos. O vulto do Arena das Dunas em construção, indiferente, corria ao lado da janela e Slatko, segurando-se no encosto de um assento, navegava numa região indistinta entre o sonho e a lembrança, lutando contra o impulso de suas pálpebras, insensíveis aos apelos da conveniência, de se fecharem. Mais uma vez, não tinha conseguido dormir. Como quase toda noite, há meses, tinha acordado de madrugada com o coração explodindo-lhe na garganta, calafrios atravessando-lhe a coluna, as mãos tremendo, o ar abandonando-o, uns instantes apenas, mas suficientes para fazer-lhe perder completamente o sono e mergulhá-lo numa angústia indefinida, um remorso insondável, sem forma, sem motivo.
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