Parte de um conjunto
de três contos que ganhou o segundo prêmio no Concurso
Literário Bartolomeu Correia de Melo, organizado pela Cooperativa Cultural
Universitária do Rio Grande do Norte.
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para ler a primeira parte do conto.
Carol militava em movimentos sociais desde sua chegada a
Natal, talvez à procura desse chão. Tinha nascido em Rosario, acreditava que na
família de um empresário bem sucedido, acreditava até que as Abuelas de Plaza de
Mayo lhe jogassem na cara, reforçada por documentos perturbadores, sua
verdadeira origem: tinha nascido num centro de detenção clandestina durante a
ditadura militar, entre uma sessão e outra de torturas à mãe dela, uma presa
política que logo após seu nascimento fora assassinada e cujo cadáver feito
desaparecer. Quanto ao pai biológico, nem as Abuelas tinham conseguido
identificar sua identidade e paradeiro. Quis não acreditar, recusou o teste de
DNA, entrou em depressão, a dúvida a dilacerava, acabou fazendo o teste que
confirmou a verdade, pensou em se suicidar, fez terapia, rasgou as fotos de
infância com seus pais adotivos, cúmplices dos generais cuja recompensa pelo
apoio à repressão fora ela, fugiu de casa, viveu por um ano de favor em casas
de militantes dos direitos humanos, à deriva, mudou-se para Buenos Aires e lá
conheceu outro filho de desaparecidos, se apaixonou, teve uma menina, viveu
feliz por cerca de um ano, mas a felicidade não tinha como durar, escondida nas
malhas da tessitura do destino uma lâmina estava pronta para cortá-la, e a
cortou, então decidiu abandonar seu país e construir uma vida completamente
nova. Mudou de nome, pois soube pelas Abuelas que sua mãe queria chama-la
Carolina, e assim desde então se fazia chamar. Na Argentina estudava direito,
ia herdar a empresa do pai e se tornar uma respeitada empresária. Só a ideia,
agora, lhe causava nojo e ânsia de vomito. Em Natal estudava artes, trabalhava
em projetos de uma ONG de direitos humanos, estava envolvida em movimentos estudantis,
tinha casado e descasado e cuidava sozinha de sua filha de cinco anos.
Slatko não lembrava quase nada da primeira parte da sua
vida. Algum trauma, que desconhecia, tinha apagado quase todas as lembranças de
sua infância na Bósnia e de sua adolescência durante a guerra civil. Sabia que
era sérvio, mas nem mais falava sua língua materna. Seus pais, pelo que tinham
lhe contado, tinham morrido no conflito. No último ano de guerra, conseguiu
sair clandestinamente do país e se refugiou na Itália. Sabia que viveu nas ruas
durante um tempo. Um projeto social o tinha tirado das calçadas e dos abrigos
temporários, teve a oportunidade de terminar seus estudos, depois de ir para a
universidade. Formou-se em sociologia, sobreviveu com empregos precários durante
anos até conhecer uma advogada natalense que fez um curso na Itália, namoraram,
foi com ela para Natal, casaram, descasaram alguns anos depois, ele revalidou
seu diploma e passou a dar aulas em uma universidade privada.
Slatko conhecia a origem de Carol. Mas, mesmo depois de
terem desvendado amplas regiões de suas respectivas intimidades, ela não tinha
querido contar-lhe muito de seu passado, um passado que jazia acorrentado no
porão mais remoto de sua alma, debatendo-se violentamente para libertar-se das
amarras. Ainda assim, ostentava com orgulho para todo o mundo que era filha de
uma desaparecida política, era a marca indelével de seu destino, um destino que
não tinha escolhido, mas do qual, uma vez conhecido, não podia nem queria
eximir-se.
Carol não sabia a história de Slatko, nem ele mesmo a
lembrava.
Carol tinha participado de uma recente ocupação da Câmara de
Vereadores. Na primeira tentativa, os ocupantes tinham sido expulsos com a
violência habitual dos descendentes dos jagunços de senhores de engenhos: spray
de pimenta na cara de estudantes desarmados, com os rostos descobertos, que
estavam sentados no pátio do edifício discutindo uma pauta de reivindicação,
cassetetes nas cabeças, pontapés, meninas puxadas pelos cabelos e outras manifestações
do típico respeito das “forças da ordem” brasileiras pelos seus cidadãos, ou
melhor, pelos seus cidadãos pobres, sobretudo quando ousam abrir a boca e se
fazerem ouvir. A segunda vez o movimento conseguiu ocupar a Câmara e ficar
acampado alguns dias. Antes que a ordem de reintegração de posse fosse
executada os manifestantes tinham desocupado espontaneamente o prédio, mas o
rastro de pichações e destruição que alguns deles tinham deixado para trás
insuflou um desejo de vingança e de punição exemplar naqueles que desde as
Capitanias Hereditárias se consideram donos da casa do povo. Um inquérito
policial tinha sido aberto e Carol, que participara do acampamento, estava
nervosa havia alguns dias. Os vereadores e a polícia declaravam para a
televisão e os jornais que só seriam responsabilizados os manifestantes comprovadamente
envolvidos em atos de depredação. Mas ela sabia que todos, indistintamente,
seriam intimidados, ameaçados e perseguidos.
Slatko apoiava os protestos, mas discordava de quem cobria o
rosto e de atos violentos. Tinha tido inflamadas discussões com Carol sobre
estratégias de manifestação. Carol defendia a legitimidade da violência como
forma reação dos oprimidos, de sacudida das mentes brancas, falocêntricas,
heterocentradas e colonizadas, considerava a pichação um ato político e
estético de ressignificação de objetos e lugares e cobrir o rosto era para ela
um signo, muito mais do que um gesto de proteção: era o símbolo da
desintegração do individualismo na ação coletiva, anônima, das massas. Mas, e
isso ela não o admitia para si própria, era também a expressão de um medo
incrustado em suas vísceras, um medo incontornável, atávico, tatuado em seu
corpo desde o instante em que nascera.
Continua...
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