Parte de um conjunto
de três contos que ganhou o segundo prêmio no Concurso Literário
Bartolomeu Correia de Melo, organizado pela Cooperativa Cultural
Universitária do Rio Grande do Norte.
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Slatko se considerava um pacifista irredutível, um praticante
convicto da não-violência. Acreditava que a violência só gerava violência, desencadeava
mais repressão, afastava a simpatia da maioria das pessoas das causas dos
movimentos sociais e não transformava nada, pois – sustentava - só o diálogo e
a construção coletiva, dentro ou fora das instâncias de mediação constituídas,
mas sempre respeitando o outro e enxergando nele humanidade, produziria
transformações efetivas. Talvez acreditasse nisso tudo porque não seria capaz
de machucar ninguém nem de destruir o que quer que fosse, assim pelo menos pensava.
Às vezes essa convicção sofria abalos inesperados, inexplicáveis.
Anos antes, ainda casado, tinha tido um caso com uma garota que conhecera durante
uma palestra ministrada na universidade. A moça, fingindo interessar-se em suas
ideias, conseguira arrancar-lhe o número de celular e insinuara-se
maliciosamente pelos interstícios de um casamento que estava ruindo, deixando-lhe
vislumbrar, num jogo sensual de mostra e esconde, a possibilidade de emoções
sexuais havia tempo esquecidas. Por fim, deixara-se enredar na teia costurada
ao redor de seus desejos pela misteriosa garota, mas só depois de transar com
ela pela primeira – e única – vez, decepcionado, só então percebera que tinha
se tornado uma obsessão para ela. Quis cortar qualquer contato, mas era tarde. Driiiiiim,
driiiiiim, driiiiiim, o celular tocava sem parar, driiiiiim, driiiiiim,
driiiiiim, todo dia, a qualquer hora, driiiiiim, esse som se convertera em
pesadelo, mantinha o celular desligado o dia inteiro, mas sua esposa começara a
suspeitar, até o inevitável acontecer e Slatko não ter mais como esconder a
traição que tinha perpetrado e a perseguição que estava sofrendo. Seu casamento
afundara, sentira-se atirado numa solidão da qual pensava que nunca mais teria
visto a cara. Na verdade estava só há muito tempo, seu casamento tinha acabado
muito antes daquele caso, mas a consciência de não ter mais um corpo quente do
seu lado, um cheiro em que mergulhar suas ansiedades, outra solidão onde se
agarrar, outro abismo insondável em que se perder fora uma chicotada em seu
rosto. Trocara o número de celular e se livrou da perseguição, mas cada vez que
pensava naquela garota que estraçalhara a ilusão de sua vida de casado era
invadido por uma pulsão irrefreável de destruição, um desejo selvagem de espanca-la,
com brutalidade, de ver jorrar seu sangue, de escutar seus gritos desesperados
por piedade, seus gemidos de dor e de medo. Em relâmpagos fugazes, que o
espantavam, se surpreendia imaginando-a amarrada a um pedaço de pau, nua,
enquanto ele a esbofeteava com violência, vendo seu rosto sangrar, e depois se
via arrancando-lhe os mamilos a mordidas, enfiando-lhe o dedo na vagina até
rasgar seus tecidos internos, e em seguida cortando seu clitóris com uma faca e
enfiando-o, ensopado de sangue, na boca dela. Por ínfimos, assustadores
instantes se percebia gozando, embriagando-se dum prazer desconcertante ao
torturar aquela garota na imaginação. Mas, assim que esses relâmpagos surgiam, os
afastava veementemente, os reprimia com a mesma violência que via desatar-se
naquelas fantasias.
Ultimamente, surtos de violência imaginária vinham brotando
com frequência em efêmeros devaneios acordado. Vivia em uma cidade concebida e
organizada para automóveis, uma cidade em que pedestres e usuários de
transporte coletivo como ele, aos olhos da maioria dos motorizados, ou seja,
dos descendentes dos senhores de escravos e daqueles que se iludiam estar nesse
seleto rol por andarem sobre quatro rodas, tinham mais ou menos o mesmo valor,
e os mesmos direitos, de um cuspe na calçada, e estas, as calçadas, um bem tão
escasso em Natal quanto a água no Sertão, o que obrigava todo dia os
transeuntes a arriscarem a vida disputando tirinhas de espaço de ruas e
avenidas com os carros, quando existiam eram amiúde usurpadas pelos veículos
privados, como as terras indígenas o foram pelos “civilizadores”. Um estrondo
infernal sacudia às vezes sua consciência em pleno dia, no trajeto até a parada
do coletivo, e se via imaginando – e desejando com inusitada intensidade – a
explosão dos carros indevidamente estacionados nas calçadas, se regozijava com
a imagem da chama engolindo as ferragens, dos rostos dos donos invadidos pelo
desespero, se embriagava com o delírio de arrancar de seus veículos os
motoristas que não paravam nas faixas dos cruzamentos para deixar passar os
pedestres e de esmagar seus rostos nos vidros das janelas de seus próprios
carros, e toda vez que ficava meia hora, quarenta, cinquenta minutos aguardando
sob um sol abrasador um ônibus que chegava cuspindo gente pelas janelas, às
vezes nem parando e obrigando-o a aguardar mais ainda, cada vez que seus braços
doíam pelos malabarismos que era obrigado a inventar para se segurar naqueles
paus de arara urbanos, um ódio profundo, inaudito, emergia incontrolável da
região mais longínqua de seu ser e desejava, em seu íntimo, cobrir o rosto e sair
destroçando ônibus, tocar fogo neles e em suas garagens, arrancar catracas e
jogá-las nas caras dos donos das máfias do transporte coletivo, contemporâneos
traficantes negreiros, e de seus lacaios nos poderes municipais. Um ódio que
durava segundos, às vezes minutos, e que lutava tenazmente para empurrar de
volta no rincão obscuro de onde tinha fugido, deixando-o apavorado pelo que era
capaz de pensar e sentir. Não, ele era um pacifista, um não-violento, um homem
sensível e delicado que jamais praticaria nem compactuaria com qualquer
violência, por quão justificada pudesse parecer-lhe.
Nas fotos da ocupação da Câmara divulgadas pela imprensa,
Carol aparecia sempre com o rosto coberto. Não condenava as pichações e a
depredação que uns companheiros de luta tinham feito antes de saírem do prédio,
mas não tinha participado daqueles atos.
Continua...
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