segunda-feira, 31 de março de 2014

Nunca Mais


Hoje, 31 de março de 2014, é um dia de luto. Exatamente 50 anos atrás, o país que escolhi como mátria adotiva foi vítima de um golpe civil-militar baseado numa mentira, sistematicamente construída e veiculada pela grande mídia: a de que a violenta derrubada do Estado de direito seria uma medida temporária de "restabelecimento da ordem" contra um (totalmente inexistente) projeto de transformar o Brasil numa "ditadura comunista" que o presidente democraticamente em exercício, João Goulart, estaria promovendo.

Essa "medida temporária" durou 21 anos, fechou o Congresso Nacional, cassou prefeitos e governadores democraticamente eleitos, implantou a censura, perseguiu, sequestrou, torturou, assassinou e fez desaparecer milhares de pessoas, exterminou inteiras comunidades camponesas e populações indígenas e executou um plano de desenvolvimento dirigido pelo capital transnacional que endividou o país, escancarou o abismo social entre os mais ricos e os mais pobres, entranhou a corrupção no seio do sistema político e econômico e semeou nas mentes e corações ideias bárbaras sobre a segurança, a justiça, os direitos humanos, a família, as minorias étnicas, culturais, religiosas e de gênero, sobre os papéis do homem e da mulher... ideias que ainda permeiam o imaginário e fundamentam práticas sociais, encarnando sua mais infame herança.

Charge de Carlos Latuff

Contra a ignorância produto de mais de vinte anos de lavagem cerebral goebbelsiana operada por uma eficientíssima sinergia entre grandes meios de comunicação, sistema educacional, produtos da indústria cultural e a herança cognitiva de cinco séculos de Capitanias Hereditárias, não está demais lembrar que o sequestro, a tortura (com requintes de brutalidade: pau de arara, álcool nos olhos e nos ouvidos, choques elétricos nos genitais e na língua, entre outras "técnicas"), o estupro (no caso das mulheres, duplamente vítimas: do regime e do machismo), o assassinato e o desaparecimento de cadáveres não foram práticas episódicas, ocasionais nem muito menos restritas àqueles que praticavam a luta armada contra a ditadura.

A tortura, o assassinato, o desaparecimento de pessoas e o extermínio perpetrado das mais diversas formas (inclusive, jogando de avião alimentos envenenados - oferecidos como "ajudas humanitárias" - em aldeias indígenas, para matar de uma vez só toda a população delas e abrir caminho na construção da Transamazônica) foram práticas sistemáticas do regime que se iniciou em 31 de março de 1964, praticas que faziam parte de um plano global - friamente planejado e mecanicamente executado - de erradicação do tecido social de toda e qualquer forma de pensamento e modo de viver cuja existência ameaçasse o projeto desenvolvimentista conservador dos generais, empresários e capitais nacionais e estrangeiros que mantinham em pé a ditadura. Práticas que massacraram não poucas dezenas, nem algumas centenas, mas centenas de milhares de pessoas: povos indígenas inteiros, comunidades rurais e, nas cidades, não apenas militantes armados, mas estudantes, jornalistas, intelectuais, artistas, sindicalistas, lideranças políticas, educadores, até estilistas e crianças de um ano de idade... toda e qualquer pessoa, a maioria das quais não pegava em armas, que ao ver do regime representasse um perigo para a "segurança nacional".

Esse tipo de práticas, quando planejadas e executadas de forma sistemática, é chamado na linguagem jurídica internacional de genocídio.

Hoje é um dia de luto porque, exatamente 50 anos atrás, começava um genocídio físico e simbólico do povo brasileiro, de cujas consequências ele ainda não se recuperou.

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