domingo, 16 de março de 2014

A tênue fronteira entre o chão e as entranhas

Foto: Antonino Condorelli (Terra do Fogo, 2006)

O último de um conjunto de três contos que ganhou o segundo prêmio no Concurso Literário Bartolomeu Correia de Melo, organizado pela Cooperativa Cultural Universitária do Rio Grande do Norte.

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Lentamente, um homem abriu os olhos. Flutuava num torvelinho indistinto de formas e cores. Aos poucos, foram-se delineando contornos mais nítidos. Sentiu que tinha acordado. Estava nu, no coração de uma mata. Altas árvores de copas frondosas fechavam o céu, criando um ambiente úmido e escuro. Uma miríade de árvores menores, plantas, flores de diversas cores e tamanhos, cipós entrelaçavam-se numa teia intricada e a primeira vista impenetrável, densa e grávida de vida. Tênues raios de sol infiltravam-se entre as frestas deixadas pela vegetação, reverberando-se nas infinitas formas da mata circunstante, confundindo a visão. Não soprava um hálito de vento, tudo parecia imóvel, mas o homem pressentia que tudo estava em movimento, um movimento incessante que assemelhava-se a uma dança estonteante. Da mais alta árvore ao mais fino fio de relva, nada estava imóvel.

Aconteceu inesperadamente, num dia gélido de começo de outono na extremidade austral do planeta, aquele rincão que alguns gostam de chamar os últimos confins da Terra, embora talvez os derradeiros confins do mundo sejam só os da nossa mente. Meses antes tinha deixado para trás – pelo menos, assim pensava - minhas amarguras e neuroses e, agarrada uma mochila, tinha começado a perambular sem rumo pelas veredas, amiúde desgarradas, da América do Sul.

Estava atravessando a pé o Parque Nacional Tierra del Fuego respirando a plenos pulmões o ar límpido daquela manhã, fascinado por uma imponente floresta de lengas e guindos, árvores fueguinas mergulhadas num emaranhado sub-bosque de arbustos espinhosos, e devido ao meu passo deliberadamente lento e pausado os demais caminhantes com quem tinha começado a trilha já estavam fora do alcance da minha vista. O dia tinha amanhecido sereno, mas no meio da manhã o céu escureceu repentinamente e logo após começou a nevar. Em poucos minutos, o caminho na minha frente e o bosque inteiro se tornaram um óleo sobre tela de inúmeras nuances de branco e de cinza.

Os colegas da escola me apelidavam Condor. Desde pequeno, sinto uma atração avassaladora por essa ave. Para os povos dos Andes Centrais, o condor é símbolo de liberdade. Talvez seja porque mora em picos inacessíveis, porque voa tão alto como quem se liberta das amarras, dos pertencimentos e apegos, porque seus voos o aproximam do sol, porque pode penetrar nas nuvens, se impregnar de vento, olhar a terra e os seres que a habitam desde uma altura de onde toda e qualquer fronteira revela inelutavelmente sua natureza ilusória. A primeira vez que tinha visto um condor ao vivo, porém, não tinha sido no céu, mas na terra, na estepe patagônica aos pés dos Andes da província de Santa Cruz, enquanto devorava a carcaça de um cordeiro. Aconteceu dias antes daquela manhã de outono. Foi desse jeito brutal que descobri que o condor, esta majestosa ave de inatingíveis voos, é também um abutre que se alimenta de carniça.

Avançava com dificuldade, afundando meus pés numa camada de neve cada vez mais espessa e na lama em que a terra debaixo dela tinha se transformado. O vento jogava rajadas de neve na minha cara cortando-a de frio, molhando e embaçando meus óculos e impedindo-me enxergar nitidamente o caminho. Meus músculos enrijeceram-se, sentia meu estômago despedaçar-se, acreditava que iria vomitar meu coração. Me senti só, uma solidão infinita como a daquele bosque indiferente, fria como aquela manhã que em poucos minutos tinha me jogado nas garras dos meus mais sádicos demônios.

Respirei fundo, pensei que só precisava continuar pelo caminho que estava percorrendo, que apesar da neve impedir enxergar muito longe havia apenas que seguir pela pista já aberta no meio do bosque e que em algum momento, mais cedo ou mais tarde, iria desembocar na estrada que me levaria até a saída do parque. Segui em frente, lutando ferozmente contra o fantasma que tentava me possuir e, inutilmente expulso da cabeça, se infiltrava sorrateiramente pelas frestas do meu intestino. Um fantasma que não tinha como afastar e me jogava na cara, a cada instante, o pesadelo de não ter forças suficientes para chegar até o fim, de me perder no meio da nevasca que poderia apagar a senda, de morrer de frio e fome antes de reencontrar o caminho. Só escutava o estridor do vento; se algum pássaro cantasse, se o sub-bosque produzisse sons que sugerissem a presença de algum animal nos arredores, se um galho se quebrasse não o perceberia.

Melodias envolventes entremeavam-se a alaridos estridentes, cantos politonais, acordes arrítmicos, agudos desafinados ou harmonicamente compassados que compunham uma sinfonia que embalava e sacudia, abraçava e chocalhava. Seres estranhos pululavam por todo lado, silenciosamente ou gemendo, produzindo cantigas, sussurros, sibilos, grunhidos e sons indecifráveis, buscando-se, pegando-se, batendo-se ou ignorando-se.

Seres alados de todos os tamanhos povoavam os galhos, tingindo-os com plumagens vibrantes ou confundindo-se com a vegetação, com bicos enormes e coloridos ou fininhos e discretos. Seres alongados, rastejantes, de peles de aparência viscosa de vez em quando apareciam entre as pedras ou pendurados nas árvores. Seres peludos, de manto levemente dourado ou cinza escuro com listras brancas, ou avermelhado com jubas escuras, com pernas, braços e mãos semelhantes aos humanos apareciam aqui e acolá entre os galhos e nos cipós, brincando, colhendo frutas ou simplesmente observando, curiosos, o homem. Miríades de pequenos seres de aparência preta ou avermelhada, de diferentes tamanhos, formando longas filas compactas ou em pequenos grupos atravessavam os chão, galgavam as pedras, subiam ou desciam pelos troncos das árvores, saindo de buracos na terra ou sendo por estes engolidos. Pequenos seres alados, das mais variadas cores e tamanhos, zuniam esporadicamente em seus ouvidos, grudavam-se em sua pele, picavam-no causando-lhe ardência e coceira, rondavam a seu redor ou simplesmente o ignoravam, ocupados em outros afazeres. Diminutos seres alados de asas coloridas, listradas ou pontilhadas com tonalidades ora vibrantes ora suaves, deslumbrantes ou apaziguantes pousavam de vez em quando em seu ombro ou esvoaçavam livres ao seu redor.

No princípio era o verbo, mas nada daquilo tinha nome. Percebeu que ele tampouco tinha um.

Como a neve espessa cobria muitas vezes os sinais do caminho, várias vezes me perdi, desemboquei em becos sem saída que davam para o boque fechado e tive que voltar nos meus passos até reencontrar o lugar a partir de onde tinha tomado a direção errada. De repente, lembrei do condor com o bico ensanguentado dilacerando as carnes de um cordeiro. Naquele instante, me senti umbilicalmente amarrado ao chão. Não importa quão longe tivesse querido e tentado fugir: o chão estava comigo, o carregava em minhas células. Mas a terra parecia tão distante, tão indiferente: estava lá, mas uma muralha imensa, intransponível a separava das minhas entranhas.

Continuando a caminhada, de algumas brechas entre as árvores vislumbrei o mar e umas ilhotas à distância. Percebi que estava costeando uma praia e, pouco depois, desemboquei nela. Na minha frente desenhava-se uma enseada rochosa cravada de arbustos, completamente coberta de neve, acariciada por um mar límpido, sereno, apesar da tormenta que o céu estava desabando na terra, de onde podiam avistar-se algumas ilhas do Canal de Beagle igualmente pintadas de branco. De repente, tão improvisamente como tinha começado, parou de nevar.

Estava encharcado, coberto de lama, cansado e ainda com alguns quilômetros de caminho pela frente, mas naquele momento, diante daquela visão inaudita para um filho dos trópicos, daquele abraço de neve e mar, nada disso me importava. Me sentei numa rocha, respirei serenamente o ar limpo daquela enseada, me deixei chicotear pelo vento que não mais me incomodava e, por não sei quanto tempo, apenas olhei e escutei. Estava só junto ao mar, às rochas, aos arbustos, ao vento, à neve e ao canto distante de alguns cormorões.

Nada daquilo tinha nome, nem ele mesmo. Mas ele nomeou. Nasceram animais, plantas, pássaros, insetos, répteis, rios e cachoeiras, folhas e rochas e, com elas, nasceu aquele homem.

Não sei quanto tempo passei lá, se adormeci ou fiquei acordado. Minha única lembrança é a visão de um homem nu no coração de uma mata úmida, longínqua daquela terra gélida onde me encontrava. Só sei que durante alguns instantes, depois de retomar a caminhada, a fronteira entre o chão e minhas entranhas me parecera mais tênue, quase invisível.

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Clique nos links abaixo para ler os outros dois contos do conjunto que ganhou o segundo prêmio no Concurso Literário Bartolomeu Correia de Melo.

O rascante sussurro da noite






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