Parte de um conjunto de três contos que
ganhou o segundo prêmio no Concurso
Literário Bartolomeu Correia de Melo, organizado pela Cooperativa
Cultural Universitária do Rio Grande do Norte.
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Una mujer se ha perdido
conocer el delirio y el polvo,
se ha perdido esta bella locura,
su breve cintura debajo de mí.
Se ha perdido mi forma de amar,
se ha perdido mi huella en su mar.
Silvio Rodríguez
O
lembro como se fosse ontem, sua voz que parecia nascer-lhe do olhar, seus olhos
tão obscenamente intensos, seu cabelo que modulava a forma do vento.
No
dia em que me suicidei, Havana resplandecia envolta no manto alaranjado do pôr
do sol. A ressaca jogava notas melancólicas nas rochas tristes do Malecón e raros
carros rasgavam a cortina de resignada apatia que envolvia o crepúsculo da
cidade.
Me
joguei no mar pensando em quando voltara a encontrar-te, poucas horas antes, numa
tarde de inverno, em uma Madri acariciada por uma chuva sutil cujas gotas
diminutas tingiam de cinza a vitrine daquele bar em Atocha onde tinha me
refugiado.
Na
hora de me jogar ao Atlântico me ocorreram o estrondo infernal das bombas, os
edifícios de Madri destroçados, as crianças com os ouvidos tampados nos
refúgios, as lágrimas das mães que encontravam seus filhos mortos debaixo dos
escombros e aquele cinza escuro e denso que tinha engolido a cidade e nossos
corpos.
Lembra
da nossa touca, aquela patética espelunca perto da Glorieta de Embajadores onde
vendias teu corpo? Quem diria que aquele lugar onde nos amamos pela primeira
vez, eu miliciano estrangeiro ferido numa guerra que não era a minha, mas me
pertencia, tu puta enamorada – assim, pelo menos, me fizestes acreditar – quase
cinquenta anos depois seria pela segunda vez o berço do meu primeiro amor?
Nos
reconhecemos logo, apesar de que tínhamos mudado muito. Permanecemos calados
muito tempo, não sei quanto, teu olhar ausente, vagamente doce mergulhado numa
xícara de café vazia, o meu perdido atrás de gotas fugidias que se perseguiam, fundiam
e esvaeciam em efêmeras brincadeiras na vitrine do bar. Passamos minutos,
minutos eternos que pareceram dias, sem trocar uma palavra. Te observava de
soslaio, discretamente, tentando decifrar os leves movimentos dos teus dedos.
Quero
te contar uma história, dissestes de repente, e então levantei o olhar e te
fitei, ou talvez fitasse tua voz que media o ritmo do tempo naquele bar envolto
num cinza escuro que lembrava a época escura em que nos tínhamos conhecido.
Vivia um jovem numa terra distante, um jovem sem casa e sem nome, sem passado e
sem futuro, um jovem que cruzava as ruas de uma cidade imensa, anônima quanto
ele, batendo carteiras nas esquinas, fazendo malabares nos sinais, cheirando
cola quando a fome apertava. Um dia, uma moça o viu pedindo esmolas num sinal e
decidiu levá-lo para a sua casa, lhe deu comida e preparou uma cama onde
pudesse descansar. Seu olhar enigmático, cativante, penetrou nas entranhas no
rapaz, desnudando-as. Se apaixonaram, mas não podiam se amar, pois ela era
filha de um deus, um deus poderoso, e o sangue divino não pode fundir-se com o
dos mortais. O amor que não podia tornar-se carne, pele, arrepios e umidade
jogou os dois no desespero. A moça, não aguentando tanto sofrimento, selou um
pacto com o pai: tornou-se humana e pagou como preço a perda da imortalidade e
do seu sexo. Agora era um homem, mas o rapaz não quis amar outro homem. Assim, também
procurou os deuses e eles aceitaram transformá-lo em mulher. Os deuses, porém, exigiram-lhe
em troca uma sina que aceitou carregar sem pestanejar, estava disposto a tudo
para viver seu amor, mas cuja natureza não quiseram lhe antecipar. A moça,
agora um homem, tinha fugido para terras longínquas pela dor de não ser amada.
O moço, mulher, foi buscá-la naquelas terras, mas não a encontrou, e lá teve
que pagar o pedágio que os deuses lhe predisseram.
Não
importa se então não te encontrei, o que importa é que agora estás aqui, que
possamos voltar a nos amar como cinquenta anos atrás, agora como então sou
jovem e nunca possui uma mulher, não me olhe por favor, não tão intensamente,
teu olhar me cega como aquela vez na avenida do Parco delle Cascine em Florença
quando eu era mulher e puta escrava e você homem e me iluminou com os faróis do
carro, teu olhar cega mais que aqueles faróis no meio da madrugada, será que
vai me amar assim como me amou na guerra?, afinal você também era um puta, não
sei, agora o único que quero é sentir teus lábios umedecendo-me, esfregar minha
pele eriçada em teu corpo nu, voltar a saborear o aroma de teu púbis que lembra
as ondas do Malecón estraçalhando-se nas rochas, teus mamilos que têm o sabor da
terra, aquela terra que quando a pisava me parecia demasiado dura.
Percorrermos
o Paseo del Prado imersos nas recordações de umas vidas que, embora não foram
as nossas, nos tinham parecidos tais. Em Cibeles saquei a coragem para te dizer
o quanto tinha te amado, ou pelo menos tinha acreditado amar-te debaixo das
bombas. Talvez fosse o medo daqueles dias o que se apoderou de mim enquanto
passeávamos por Recoletos, mas na Plaza de Colón resolvi finalmente te beijar.
Era a primeira vez que beijava uma mulher, a segunda primeira vez da minha
vida, e enquanto minha língua percorria as dobras remotas da tua língua,
enquanto se impregnava das texturas e os sabores mais recônditos da tua boca,
enquanto explorava a região entre teus lábios e tuas gengivas e meus lábios absorviam
avidamente tua umidade, senti aquela mesma sensação de jangada arrastada pelas
ondas que me invadiu no dia em que, com a mesma idade de então, te beijei num
refúgio enquanto os aviões fascistas destroçavam Madri.
Lembra
da patética espelunca perto da Glorieta de Embajadores onde eu vivia (quem sabe
a mesma onde você tinha vivido cinquenta anos antes?), suas paredes descascadas
a lembrar os prédios da Havana Velha, as rachaduras do teto de onde caiam gotas
que pareciam roçar o silêncio, o frio que impregnava tudo e que acabou
impregnando os nossos ossos? Não sei se foi lá onde nos amáramos pela primeira
vez, o único que sei é que quando acordei você dormia no meu peito; porém, já
não era suave e evanescente como a garoa daquela tarde de inverno em Madri, mas
marmórea como a mulher cuja história tinha me contado horas antes, e o calor úmido
do trópico esmagava o quarto e os nossos corpos.
Como
foi, não lembro mais como descobri que o que você buscava não era o meu amor,
mas cavalgar a ilusão de uma vida melhor, talvez seja esse o sentido do verbo jinetear
que vocês usam tanto, devia tê-lo entendido desde o início, mas o que importa?,
o que importa é que não sei se alguma vez me amastes... foi por isso que me
matei.
Não
me pergunte como posso estar aqui agora, sentando contigo na grama do Retiro,
lembrando meu suicídio: não sei responder. Também não sei como pode ter
ocorrido tudo em um dia.
Talvez
seja verdade, talvez um devaneio, não sei, não quero saber. O que importa é que
pelo menos uma vez na vida acreditei que você me amou, e se foi um sonho qual a
diferença? Você mesma talvez seja um sonho... e quiçá eu também.
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