Faíscas de sol escorriam por
rachaduras na mata fechada e Anaíde corria, sem parar, havia horas. Não sentia
mais seu corpo, não sentia suas pernas inchadas rachadas por espinhos, pedras e
galhos, não sentia sua pele cortada, seus braços dormentes, o suor
misturando-se ao sangue em seu rosto sulcado de escaras. Sentia apenas sua
respiração entrecortada e corria, com Adelina nos braços, sem saber para onde.
O abraço do sol engolia o
ônibus parado, afogando em calor corpos suados e espremidos. Araci, saia preta
abaixo do joelho, blusa escura recatada de manga comprida, o cabelo
forçadamente liso, violentado pela escova para esconder sua origem pagã e preso
num coque, óculos escuros, subiu os degraus devagar, esforçando o frágil corpo
rebentado, empurrada pela correnteza, e esgueirou sua silhueta entre as festas
que se abriam no paredão humano até encontrar um canto onde se segurar. Os
óculos escondiam um olho inchado, ainda dolorido, e o outro salpicado de
vermelho pela insônia.
Jacira estava em pé,
segurando-se num corrimão, ao lado dela. Diferentemente de Araci, não
disfarçava sua negritude que brincava sinuosamente nas curvas encaracoladas de
seu cabelo.
Mariana subiu na parada seguinte,
os olhos esverdeados reverberando um desalento rastejante que lhe escorria
pelas entranhas, mergulhada numa aflição que a isolava do calor, do suor, do
aperto e de tudo o que a rodeava naquele instante, uma aflição calma,
persistente, que permeava todo seu corpo. Um rapaz passou atrás dela devagar,
aproveitando o espaço apertado para demorar-se, esfregando-se levemente em seus
glúteos. Perdida em sua ansiedade, Mariana nem percebeu que o moço estava de
pau duro.
Uma senhora sentada na janela
ao lado de Francisca, poucos centímetros à frente de Mariana, levantou-se para
descer e o rapaz, de reflexos impecáveis, pediu licença a Francisca e ocupou o
lugar. Vestia bermuda e ao passar roçou suas pernas peludas nas coxas vigorosas
e macias de Francisca, que estava de shortinho, mantendo viva assim sua ereção.
Pouco depois de sentar-se, porém, uma raiva violenta o sacudiu. Sentiu nojo,
arrependeu-se de ter sentado ali, mas não havia mais o que fazer: o ônibus
estava lotado e ele fora um burro. Estivesse na rua, sem tanta gente ao redor,
daria uma puta duma lição naquela bicha, lhe ensinaria a deixar de safadeza na
peia. Ainda por cima ninguém diria que não é mulher, não fosse pelo gogó que
percebeu depois que se sentara e a mapeara de soslaio dos pés à cabeça. O pior
é que era linda, uma pele cabocla marmórea, de um bronze delicado e uma
sinuosidade inebriante. Porca nojenta, dava até vontade de trepá-la! Aliás, se
estivesse na rua só com ela seria o que faria: a treparia e depois a
arrebentaria, para deixar de ser safada. Alguém, por sinal, já devia ter lhe
dado uma boa surra, pois seu belo corpo estava visivelmente cravado de
hematomas.
Lucy, que subira na mesma
parada de Mariana, encontrou lugar em pé bem ao lado da cadeira de Francisca,
perto de Araci. Estava radiante, tinha recebido flores de sua namorada e o dia
resplandecia em seus olhos.
Lucy fora tudo o que quis ser,
mas quase sempre no momento errado. Quis ser mãe, quis ser puta, quis ficar com
homens, quis ficar com mulheres, quis brincar, quis ser séria, quis monogamia,
quis amores múltiplos e sem amarras, quis ser casta, quis ser devassa, quis ser
dona de casa, quis ser artista. Mas quando quis ser mãe, a chamaram de puta.
Quando quis ser puta, quiseram força-la a ser casta. Quando quis ser artista, a
violentaram para que fosse dona de casa. Quando quis viver amores sem
correntes, lhe cobraram monogamia. Quando quis ser monogâmica, a acusaram de
ter se vendido. Fora enjaulada em ciúmes e incompreensões, tivera feridas na
pele e nas vísceras, superara hematomas e insultos, paus enfiados à força e
mordaças que não conseguiram calá-la. Agora era feliz, mesmo afastada de sua
família, e sorvia com avidez essa inusitada felicidade.
Francisca ia para a faculdade,
estava voltando às aulas depois de um par de dias de convalescência.
Frequentava pela manhã porque, desde que fora expulsa de casa, trabalhava nas
ruas à noite. Não era raro que apanhasse; sabia que muitos homens procuram
travestis para vomitar nelas pulsões recônditas e violências recalcadas e tinha
se acostumado a isso. Mas a surra de três dias antes tinha sido mais feroz que
de costume. Assim que entrara no carro percebera quem era o cliente, mas como
este parecera não ter entendido, ou fingira não tê-lo, ficara calada. Mas
quando a penetrara de quatro e ela fingira gemer de gozo, o homem a agarrara
pelos cabelos, saíra de dentro dela e começara a espanca-la com brutalidade,
sem medir a força dos socos e dos pontapés, arrastrado por um devaneio de
aniquilação. Suja e devassada, a pele rasgada, ensanguentada e salpicada de
hematomas, fora arremessada violentamente do carro e, antes de arrancar, o
homem cuspira nela e a xingara, deixando-a semi-inconsciente no asfalto. Era
seu tio, o mesmo que quando criança, quando ainda era Francisco, entrava amiúde
em seu quarto fingindo querer brincar, o mesmo que apoiara irrestritamente o
irmão quando o jogara nas ruas após descobrir que não era homem e que vestido
de mulher não o reconhecera, mas reconhecera imediatamente seu gemido de falso
gozo. Fora hospitalizada, tivera que passar uns dias em casa, teria precisado
descansar mais, mas preferira retornar à faculdade para não perder mais dias de
aula.
Mariana estava voltando ao
trabalho depois de uns dias de licença. Uma angústia dilacerante a percorria,
tinha brigado feio com a mãe. Fora rejeitada como filha. O dissera entre
soluços, o coração esmagado numa aflição inominável, mas não poderia ter agido
de outra maneira. Tinha lhe oferecido todo apoio, tinha se disposto a ficar com
a criança e a cria-la, e ainda assim a filha quis… não conseguia nem pronunciar
aquela palavra… e pior, sem avisar, chegando para ela com o fato consumado. A
mãe de Mariana não sabia o quanto aquela decisão tivesse despedaçado suas
entranhas. Não sabia e não interessava, o que a filha fizera era inconcebível,
abominável. Não importava que tivesse acontecido nas primeiras semanas, não
importava que sua filha teria revivido em cada gesto, em cada respiração
daquela criança o… aquela palavra também era impronunciável. Enquanto o ônibus
deslizava pela avenida naquela tórrida manhã, a dor que estraçalhava as
vísceras de Mariana era mais intensa da que tinha sentido na sala clandestina
de cirurgia.
Jacira ia para a casa da patroa
para mais um dia de serviço. Apesar dos seus patrões não raro a ridicularizarem
perante os outros apresentando-a como uma negra burra mas engaçada, gostava
daquela família, se sentia parte dela. Naquele dia, Jacira estava angustiada
com a ausência de notícias de seu filho mais velho, de dezesseis anos, que não
aparecera em casa havia dois dias. Nunca tivera tempo para dedicar-se ao filho
como gostaria, mas ultimamente o tinha perdido completamente de vista e uma dor
sutil, densa e indecifrável, lhe embrulhava o estômago ao pensar no que podia
ter lhe acontecido. A tranquilizava um pouco saber que a filha mais nova, de
nove anos, estava na escola, onde a acompanhava todo dia Raimundo, seu atual
companheiro. Uma pessoa doce, tranquila, diferentes dos vagabundos bêbados com
quem tinha convivido durante anos. Só não sabia, Jacira, porque acordava todo
dia muito cedo, antes da filha, que Raimundo despertava sempre a menina com
carícias debaixo das roupas e que, antes de leva-la para a escola, costumava
brincar com ela enfiando-lhe um dedo na vagina. Não sabia, embora quando
criança seu padrasto tivesse feito com ela as mesmas brincadeiras.
Araci ia para o culto matinal.
Nas últimas semanas, não passara um único dia sem ser arrebentada ou trepada à
força pelo marido. Não conseguia encontrar motivos para que apanhasse, nem para
que fosse estuprada. Era diversão, necessidade, rotina, uma brincadeira talvez.
Quando, depois de vários dias seguidos de agressões, não conseguindo mais
esconder os arranhões e os hematomas, falara daquilo com o pastor, o primeiro
que lhe perguntou é o que ela tinha feito para ser castigada, se tinha sido uma
má esposa, mas ela sempre fora uma mulher reta, uma esposa impecável, submissa,
dedicada integralmente a seu homem, como mandavam as escrituras. Não, não havia
motivo, ele devia estar possuído, era a única explicação possível e o pastor
concordara, mas precisava ficar calada, aguentar em silêncio e orar com todas
suas forças para que o Cão saísse do corpo do marido, nada de contar para quem
quer que fosse, ela era uma mulher boa e com suas orações haveria de vencer
essa luta contra o mal, contra o demônio que estava pondo à prova sua fé usando
como instrumento seu companheiro de lar e de cama.
Os corpos de Lucy e Araci, em
pé uma ao lado da outra, iam ficando cada vez mais grudados à medida que o
ônibus detinha sua marcha para engolir mais pessoas. Num relâmpago fugaz a pele
de Araci foi atravessada por um calafrio rastejante, inexplicável, e de
repente, assustada, percebeu que seus mamilos tinham ficado túrgidos. Sufocados
pelo sutiã, pareciam querer explodir. Sem entender, deu uma rápida espiada na
moça ao seu lado e aquela visão a inquietou. Baixou o olhar e rezou mentalmente
uma oração. Estava excitada, teria invadido sem receios a boca delicada, de
traços suaves, daquela moça desconhecida de cabelo verde salpicado de gritantes
mechas roxas. Satanás, não havia dúvidas, a estava pondo à prova mais uma vez.
Improvisamente, o ônibus parou
em um cruzamento e um concerto de buzinas e gritos permeou a ar daquela cálida
manhã. Policiais interditavam o transito para deixar passar, na avenida
perpendicular, uma manifestação. Uma profusão sinuosa, rítmica de vozes,
faixas, cantos, slogans, rostos pintados e corpos multicoloridos desfilava
diante do ônibus. Um calor insensato, uma umidade rascante e os poucos metros
quadrados em que dezenas de corpos estavam apinhados tornavam a permanência no
ônibus insustentável. Muitos passageiros desceram para aguardar a marcha passar
do lado de fora; outros, curiosos, foram olhar do que se tratava. Uma torrente
feminil transbordava na vizinha avenida. Compassadas melodias entremeavam
slogans aguerridos, carregados de indignação e raiva.
Jacira perguntou a outra
passageira o que estava acontecendo. Ela não soube responder, mas lembrou-se
que era 8 de março e, como tinha quase só mulheres na manifestação, pensou que
se tratasse de algum ato ligado àquela data.
Lucy se entusiasmou, desceu do
ônibus exultante e decidiu mergulhar na correnteza multiforme. Tirou a blusa e
o sutiã, pediu a uma manifestante que escrevesse um slogan em seu peito com o
batom que tinha na bolsa e se jogou alegre na multidão dançante. Volúpia
arrebatadora, arrepiante sensualidade, Araci só conseguia enxergar aquilo tudo
com excitação… o sinuoso rio das manifestantes, a desinibida ousadia daquela
moça desconhecida do ônibus, as melodias embriagantes daqueles cantos. Era tudo
obra de Satanás, o sabia, mas Satanás lhe parecia tão provocativamente atraente
naquele momento.
Francisca observava com
cautela, deixava-se inundar pelos slogans que ecoavam da avenida adjacente, que
a arrebatavam, e um impulso arrasador a empurrava para aquela correnteza em
cheia. Mas tinha medo, um medo entranhado em suas veias que lhe secava a
garganta e lhe subia pelos ossos, imobilizando-a. A vontade de mergulhar
naquele compasso e deixar-se dançar a inebriava, mas o medo era tão poderoso,
estava tão incrustado em suas vísceras que a deteve. Uma caminhonete do Bope
acompanhava a macha à distância e alguém, em pé na caçamba com uma câmera
profissional, apontava seu objetivo para algumas manifestantes. Uma gota fria
percorreu as costas de Francisca. Aquelas mulheres serão vigiadas, perseguidas?
Ninguém poderia prever as consequências de se envolver naquilo. Decidiu,
apenas, observar. Acendeu um cigarro, encostou-se numa parede e contemplou,
extasiada, aquela multidão esbanjando gozo e ira.
Jacira ligou para a patroa, que
atendeu o celular em plena depilação. Hoje se sentia de bom humor e dispensou
Jacira do serviço, apesar de achar inconcebível que uma manifestação pudesse
parar o transito em horário de pico sem mais nem menos e a polícia, ao invés de
baixar o cassetete nas manifestantes, as ajudasse a atrapalhar a vida dos
motoristas e das pessoas de bem. Mas, claro, com uma comunista no poder o que
era de se esperar? Às vezes dava mesmo vontade de mandar-se para Miami. De
qualquer forma, hoje era melhor se Jacira não fosse: era dia da mulher e sabia
que o esposo voltaria para casa na hora do almoço, com flores para ela, e a
levaria para um restaurante bacana. Depois, com ninguém em casa porque os
filhos iam estar na escola e Jacira fora dispensada, o convenceria a fazer algo
melhor do que voltar para o trabalho. Enquanto suportava estoicamente a ingrata
dor da depilação do púbis, lia no tablet a notícia da rejeição que a Globeleza
daquele ano tivera por parte do público. Não é de se estranhar, pensou. Apesar
de ter um corpo bonito era preta demais, feia que nem Jacira, coitada. Tudo bem
que para sambar nua na tevê tinha que ser uma mulata, mas negona mesmo, daquele
jeito, era demais. A demora a enervava, queria que aquele suplício terminasse
logo, ia ficar bem lisinha e macia como ele gostava, hoje haveriam de se
divertir, o sacrifício para agradar seu homem valeria a pena. Enquanto suportava
que arrancassem os pêlos de sua vagina, não sabia que seu marido estava
trepando uma colega de trabalho numa salinha contígua ao escritório dele, de
quatro, como corresponde a uma rapidinha no serviço.
Jacira ficou aliviada com a
decisão da patroa e pensou que se fosse até a rua paralela talvez tivesse a
sorte de encontrar um ônibus na direção contrária e conseguiria voltar para a
casa antes da filha sair para a escola. Estava feliz, pelo menos naquele dia
teria um pouco de tempo para ela, para a filha, para o companheiro e para sair
em busca de notícias de seu menino. A patroa era gente fina. Enquanto se
dirigia à outra rua à procura de um ônibus para voltar para casa, sua menina ia
sendo acordada por Raimundo como todos os dias. Desta vez, quem sabe Jacira
chegasse antes dele leva-la para a escola.
Cintilando em letras vibrantes,
palavras tatuadas em faixas, cartazes, costas, colos rasgavam o intestino de
Mariana. Não conseguia esquecer o nojo, a repulsa, a dor, o medo, a vontade de
se matar depois daquilo que sofrera, mas também não conseguia esquecer a
dilaceração, o abalo que a sacudira ao tomar aquela decisão e, sobretudo, não
conseguia esquecer o olhar severo e triste, carregado de angústia e reprovação
da mãe. Uma mão invisível apertava-lhe a garganta, ia sufocando-a aos poucos.
Quis respirar. Suas pernas a levaram sozinhas, porque seu querer estava
paralisado. Simplesmente, entrou na correnteza e se deixou carregar. Sua boca
cortou o silêncio denso de seu estômago e começou a gritar, quase autonomamente,
os slogans que escutava. Não sabia o que viria depois, não sabia mais nada.
Apenas, caminhava.
Araci não resistira às
investidas de Satanás. Numa ruela transversal, escondida por trás de uma
caçamba, deslizara avidamente sua mão por debaixo da saia e a calcinha, que
transbordava tesão e umidade. Fechou os olhos e as imagens daquela moça de
cabelo verde e roxo de peito nu, pequeno e rijo, branquelo mas com os mamilos
levemente bronzeados, e daquela multidão envolvente, melódica, sinuosa
desfilaram pela sua pele e a arrastraram numa enxurrada selvagem, embriagadora.
Gozou intensamente, um gozo vivo, autêntico, como havia muito tempo não sentia,
gemeu e nem cuidou de abafar seu gemido, afinal com o estrondo da rua e da
marcha ninguém iria ouvi-la.
Recomposta, voltou perto do
ônibus e se deteve contemplando a manifestação. Se sentia leve, feliz,
embevecida de pecado. Lembrou-se do facão com que cortava verduras, aquele com
que uma vez o marido brincara retalhando suas costas, ainda guardava as
cicatrizes. Chegando em casa o esconderia na saia. Se o marido voltasse a
encostar um dedo nela, o desembainharia e deixaria Jesus guiar sua mão. A
justiça dos homens talvez a condenasse, mas tinha certeza de que Jesus não o
faria, ele era misericordioso.
Anaíde corria para não ser
fenda negra, abismo carnoso em que despejar gozo de branco, corria para não ser
vaca de parir, corria para não ser lasca de pele escura para peles brancas de
macho se esfregarem, corria para não ser penetrada de quatro e torturada por ciúme
por outra escrava só que branca e bem vestida, corria para não ser diversão
familiar enquanto era esfolada a chicotadas amarrada nua a um pedaço de pedra,
corria por Adelina, para que as duas conhecessem outra vida. Simplesmente
corria, sem saber para onde.